terça-feira, 6 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




 

V Capítulo

 

 

(A carta)

“Afonso”
Quando receberes esta carta, eu já estarei fora de Portugal.
Como sabes, a nossa relação estava a deteriorar-se de  dia para  dia. O
nosso amor, do qual não duvido, nem nunca duvidei, já não era suficiente para manter uma relação, minada pela perseguição, receio constante e pela loucura de alguém, que ainda não percebeu que tu já não lhe pertences. Também sabes que os meus negócios não estavam  a correr bem, tinha a empresa completamente falida, nunca to disse, pois sempre achei que mais cedo ou mais tarde as coisas se iriam resolver. Não se resolveram. Vendi a empresa a umas pessoas amigas.
Disseram-me que ainda tem viabilidade, e eles têm muito dinheiro para investir, algo que realmente era necessário e eu não tinha.
A minha casa ficou à venda. A minha irmã vai ficar a tratar de todos os pormenores.
Como vês tudo se conjugava para mais cedo ou mais tarde eu ter de tomar decisões drásticas na minha vida. Ao dia de hoje penso que foram as melhores para mim, espero não me vir a arrepender nunca.
Voltando a nós os dois, lamento que tenha de ser assim. Não teria nunca coragem para te dizer isto cara a cara. É demasiado doloroso, mas fiquei sem alternativas, julgo eu.
Espero que o tempo apague esta dor que inflijo a nós os dois, assim como espero que um dia me perdoes.
Não pretendo voltar a Portugal, já nada me prende aí.
Desejo que encontres a tua felicidade em breve. Eu vou tentar encontrar-me a mim própria.

Beijo grande
Lídia”

Afonso levou mais uma vez o copo de vodka à boca. Era a terceira ou quarta vez que  relia aquela carta.
Sem conseguir manter um tipo de raciocínio lógico, com um nó da mágoa e da bebida forte a apertar-lhe a garganta. O peito, sentia-o a queimar,  numa dor angustiante.
- Mais uma...- escapou-lhe,  sem perceber se em pensamento ou na voz amargurada.
Um ano e meio depois da sua atribulada separação e a sua vida ainda se mantinha naquele espartilho labiríntico, violentamente conduzido por uma mulher que considerava louca, Marta.
Lídia era a última das três mulheres que saíam da sua vida abruptamente no espaço de ano e meio. Todas elas lhe tinham mostrado razões diferentes, mas todas unidas por um traço comum... ele. O objecto obsessivamente cobiçado por uma intransigente louca.
Acendeu um cigarro, levantou-se na direcção da janela da sua sala de estar, enquanto tentava ligar esta última história a todas as outras. Lá fora a noite permanecia fria, mas não tão fria e sombria como ele se estava a sentir. Era inverno, mais um na sua vida.
Quis acreditar nas outras razões, nas que tinham levado num passado bem recente a que estas três mulheres saíssem repentinamente da sua vida.
Existiam outras razões sim, era um facto, mas todas se desvaneciam enquanto só apenas uma se entrelaçava na origem e no final, as atitudes maníaco depressivas daquela louca. Pelo menos no que dizia respeito a estas três mulheres. Talvez Marta se tivesse apercebido que mais cedo ou mais tarde ele viesse a ter uma consolidada e sólida relação com alguma delas e o perdesse definitivamente.
Lembrou-se das palavras de Rogério, o amigo que lhe apresentara Marta.
- Essa gaja não te vai largar tão depressa ! – Dissera-lhe Rogério três meses depois de Afonso ter saído de casa de Marta, num jantar de aniversário da sua amiga Simone. Rogério tinha-o dito de uma forma algo premonitória, como se estivesse ansiosamente à espera daquele desfecho, como se o esperasse desde sempre, e com um sorriso a raiar uma satisfação que lhe parecera algo vingativa.
Essas palavras continuavam a martelar-lhe a cabeça.
Afonso ficara com duas certezas nessa noite. A de que Rogério ficara imensamente satisfeito com a sua separação e a do prazer que lhe dava, saber da obsessão que Marta tinha por Afonso, continuando a mover-lhe  cerradas e continuadas perseguições.
Não o condenou. Nessa altura sabia perfeitamente porque razão Rogério assumia aquela atitude. Afonso tinha ficado com a mulher que Rogério queria para amante.
Rogério era casado, no entanto e também através de uns amigos tinha conhecido Marta e uma amiga. Esta tinha-o enfeitiçado de tal forma que mesmo colocando em perigo o seu casamento, ele não se coibia de bradar aos sete ventos, comentando entre amigos, que tinha conhecido uma mulher espantosa, uma mulher excepcional, que o tinha deixado à beira do desespero.
Afonso, brincara com essa situação, propondo-se inclusivamente a um dia saírem juntos os quatro.
Cláudia, mulher de Rogério era extremamente ciumenta. Teria algumas razões, a principal talvez fosse o seu aspecto pouco cuidado, desmazelado e muito pouco atraente, que levava Rogério a procurar fora do seu seio familiar, mulheres mais bonitas e interessantes. Era uma mulher frívola e cínica, amiga de intrigas e mexericos. De uma forma desesperadamente ridícula, no pequeno círculo de amigos que mantinha com algum custo, sempre por perto, mostrava uma altivez e uma sobranceria digna de uma qualquer dama ou senhora, mas sem nunca conseguir disfarçar a sua falta de humildade e fútil modéstia. O seu baixíssimo nível cultural, bem como a sua inadequada inconveniência, eram motivo de crítica e chacota constante entre os amigos, deixando quase sempre a Rogério um indisfarçável incómodo.
Algum tempo depois Rogério conseguira elaborar um plano para uma saída.
Afonso numa noite, já devida e previamente combinados, faria um telefonema, para casa dele, manifestando intenção no seu auxilio.  O motivo simples, era o de ir buscar um carro da empresa onde Afonso trabalhava, à outra margem, mais propriamente a Setúbal. Estava numa garagem de um edifício que a sua administração mantinha naquela cidade. Chegariam um pouco tarde, Rogério era a pessoa de confiança indicada.
Assim fizeram. Mesmo com a eterna  desconfiança manifestada por Cláudia a atormentá-los, saíram nessa noite. Encontraram-se com Marta e a amiga, ironicamente à porta de uma igreja em Lisboa.
O que Rogério definitivamente não contara, fora com a fulminante e explosiva empatia que se acendera entre Afonso e Marta, nessa noite. Ela não sabia que Rogério era casado. Esse facto tinha-lhe sido maliciosamente omitido por Rogério, bem como as suas verdadeiras intenções.
Marta  acabou por descobri-las nessa mesma noite por Afonso.
Essa fora a última vez que Rogério estaria com Marta.
Voltou a pegar na carta, apagando o cigarro nervosamente, no cinzeiro de pedra mármore.
Lídia sem o ocultar, não tinha conseguido resistir à pressão, assim como Alexandra e como Lara por último. Embora os problemas  financeiros de Lídia se tivessem agravado e avolumado na sua empresa, contribuindo para esta irredutível decisão, o que lhe interessava agora era compreender até que ponto a chantagem psicológica de Marta, tinha sido decisiva.
Lara aguentara cerca de oito meses. Das três, era a que tinha conseguido resistir por mais tempo, com mais estoicismo e coragem. Fizera-o por amor e também por compreensão. Também ela tinha sido vítima de um ex. marido perseguidor e problemático.
Também ele os tinha perseguido implacavelmente. Afonso tinha a certeza que o fizera com a furiosa e preciosa ajuda de Marta.
Acabara por lhes dar descanso no dia em que morrera, vítima da sua própria e crónica insanidade.
A dissimulada perseguição começara desde casa de Lara, até Setúbal. Na serra da Arrábida, numa tarde molhada de Inverno, após várias tentativas de abalroamento do carro de Lara conduzido por Afonso, com um único intuito, o de os precipitar pela ravina. Despistou-se numa curva sinuosa, embatendo numa árvore, tendo morte  imediata.
Depois disso, Lara para desgosto de Afonso, não voltara a ser a mesma.
Uns minutos passados depois desse acidente, Afonso recebera mais uma das incontáveis e absurdas chamadas anónimas. A mesma mulher que lhe começara a ligar na noite em que Marta tentara frustradamente, lançar-se ao rio, na ponte de V. Franca. A mesma voz sensual, como se o conhecesse desde sempre, observara-lhe num insinuante sarcasmo.
- Continuas a conduzir bem Afonso. As curvas da serra da Arrábida são bastante perigosas nesta altura do ano. - Desligando logo em seguida.
Embora Lara lhe falasse num constante e desagradável sem número de chamadas anónimas efectuadas por uma mulher, para o seu telefone, Afonso sempre lhe omitira as chamadas feitas para si, sabendo perfeitamente qual a sua origem.  Essa última não iria ser excepção. O estado de choque em que Lara se encontrava, era um também um adequado e conveniente motivo. 
Por uns tempos estranhamente, não foram incomodados de nenhuma forma. Lara encontrara em Afonso um reconfortante ombro, onde pode descansar daquela dilacerante e dolorosa experiência, sem nunca se aperceber de uma outra perseguição que se manteria em paralelo, até ao dia do aniversário de Afonso.
Lara combinara em segredo com todos os amigos de Afonso que conhecera até aí, bem como os seus, um jantar de comemoração do seu trigésimo sétimo aniversário. Alugara a sala no bar do seu amigo, na praia de Carcavelos. Informara Afonso dessa sua decisão, no próprio dia. Sabia perfeitamente que ele era um pouco avesso a coisas combinadas com muita antecedência
Para Afonso fora uma agradável surpresa. Entrar no bar e ser aprazivelmente presenteado com a presença de quase todos os seus amigos e amigas mais próximos, fora motivo de uma forte e inesquecível emoção. Tudo decorrera na perfeição,  planeado por Lara que se esmerara afincadamente, oferecendo-lhe uma magnífica e inesquecível noite. Estavam radiantes e muito apaixonados, tinham esquecido por completo tudo o que de mau e funesto lhes acontecera nos meses anteriores.
Depois da abertura dos presentes e dos respectivos agradecimentos, do habitual desejo finalizado no tradicional sopro de velas, alusivo aos seus trinta e sete anos, Lara perguntara-lhe o que tinha desejado quando apagara as velas.
- Não desejei nada, apenas agradeci a Deus por me ter colocado um anjo no meu caminho...
Lara visivelmente emocionada, não conseguira conter as lágrimas.
Amo-te muito ! – Disse sentidamente, enquanto se abraçaram e beijaram ternamente durante uns longos e intermináveis minutos.
Todos os amigos presentes, sentiram aquela magia contagiante. Emocionados aplaudiam de pé, pedindo que repetissem aquele momento. Afonso e Lara fizeram-lhes a apetecida vontade entre uma dezena de juras de amor. A sala entre brindes e sinceros sorrisos, irradiava alegria e felicidade. Havia já muito tempo que eles não se sentiam tão felizes e apaixonados.
Afonso levado nessa imensa onda de júbilo, reconhecendo um ligeiro e salutar exagero de álcool, pedira Lara em casamento, enquanto a sala se silenciava subitamente, sem que Lara lhe desse a inevitável resposta de assentimento.
Lara e  Afonso, terminando aquele longo beijo, viraram-se lentamente na direcção do centro da sala, onde uma das empregadas de acentuado sotaque brasileiro permanecia imóvel, numa pose quase tétrica. Na sua mão direita, uma caixa forrada a tecido púrpura, enfeitada por um laço de cor roxeada escura. No outro braço, mantinha um enorme ramo de flores, objecto da soturna e silenciosa observação, responsável por aquela súbita melancolia que invadira a sala e todos os amigos de Afonso.
- Um estafeta deixou na recepção estes presentes para si, Sô Afonso – Balbuciou, com a voz trémula, apercebendo-se de que algo não estava bem, enquanto pousava na mesa à frente de Afonso, a caixa e o ramo de flores. Num ápice reparando no olhar petrificado de Lara e Afonso, abandonou a sala, correndo desenfreadamente, para recepção, sem virar as costas.
- Aquela estúpida ainda me traz esta merda para aqui !?! - Disse visivelmente irritado.
- Ela é brasileira Afonso ! Não faz ideia de que flores se costumam oferecer em Portugal nos aniversários – disse-lhe  Lara, enquanto o reconfortava.
Era lindo sem duvida, o ramo de flores, mas composto essencialmente por jarros e crisântemos vermelhos, apropriado para um serviço fúnebre. Na base do ramo, dobrado, um cartão de cor creme, acompanhava o ramo naturalmente. Afonso pegou-lhe, abriu-o, em letras negras, dactilografadas leu silenciosamente o que estava escrito numa frase curta:
“Que fiques em paz no dia em que as pedras se transformarem em pó”.
Rasgou-o com veemência. Estava  completamente fora de si. Lara nunca o vira assim, com tanto ódio e raiva.  Aquela alegria e extrema felicidade que uns minutos antes os invadira, tinha terminado bruscamente. Em seu lugar uma tristeza fúnebre acolhia-os desprevenidos. Sentia-se dilacerado. Dirigiu-se à recepção, no intuito de saber se a empregada tinha visto algo que lhe desse alguma pista.
No seu curto trajecto tropeçara numa mesa, lançando ao chão um par de copos vazios, que se estatelaram num interminável ruído de destruição. A sua vida de uma forma lenta e dolorosa estava a ser destruída. A violação da sua felicidade, o desassossego que alguém teimava em manter malévolamente, ultrapassara todos os limites. Queria saber quem lhe tinha deixado aquele deplorável presente. Encontrou-a a chorar convulsivamente no ombro de uma colega. Colocou-lhe a mão no ombro amigavelmente, sem coragem para lhe perguntar nada, ou acusá-la do que quer que fosse. Ela não passava de um instrumento, de um inocente braço do mal  daquela mulher diabólica e sem escrúpulos. Foi até à esplanada, sabendo perfeitamente que não encontraria nada nem ninguém, sem esperança tentou encontrar algum vestígio ou indicio, que lhe mostrasse a origem daquele estúpido e vil episódio.  Olhou para o céu, rogou silenciosamente a Deus que colocasse um fim àquela interminável loucura e aquele indesejado sofrimento.
Lara viera ao seu encontro, ainda algo receosa, perguntou.
- Sempre me escondeste algo não foi Afonso? O que se está a passar? Queres falar disso agora?
Afonso agarrando-lhe nas mãos, pediu-lhe desculpa:
- Sabes, eu sempre desconfiei que o teu ex. marido, desde o dia em que nos conhecemos no Guincho, não actuava sozinho. Quando os pneus apareceram esvaziados...eu nunca tive a certeza se foi ele.
- Tu quiseste dizer-me isso, naquele dia em que saíste de casa de manhã cedo, naquele poema que me deixaste. Eu na altura não percebi. Lembras-te que te perguntei nessa tarde o que querias dizer? Disseste-me que era o que sentias naquele momento, que o tempo haveria de lhe dar um sentido. Agora percebo, ela nunca deixou de nos atormentar pois não Afonso?
- Afonso abraçando-a, disse-lhe ternamente.
- Não ! Pelos vistos não, mas juro-te que isso vai acabar.
Lembrou-se da caixa.
Voltaram a entrar no bar, de mão dada. Os seus amigos divididos em pequenos grupos, continuavam em pequenos murmúrios a comentar aquela insólita situação. Passaram pela empregada que lhe tinha trazido o ramo de flores. Afonso suavemente de uma forma quase paternal, levantou-lhe o queixo, que entretanto ela baixara em sinal de vergonha e arrependimento.
- Está tudo bem, não existe motivo para ficar assim. Foi uma festa óptima, obrigado.
- Meus amigos ! E se fossemos beber um copo até Lisboa?!? Bradou, enquanto Lara, com um sorriso tímido de concordância e admiração, lhe perguntava.
- Não queres abrir a caixa? – Disse com inocente curiosidade.
- Eu julgo saber o que a caixa contém – Disse-lhe Afonso com uma convicção fria, deixando Lara a estremecer num súbito e longo arrepio que lhe subia gelado pela espinha.
- Como assim?- perguntou-lhe Lara, surpreendida e algo assustada.
Lara nunca o viera a saber.  Um mês depois separaram-se, após vários desentendimentos e pressões, provocados por inexplicáveis telefonemas e ameaças intermináveis. A sua paixão não aguentara sucessivas perseguições e chantagens psicológicas, como uma doença que se espalha lenta e dolorosamente pelo corpo e pela alma até à morte. Esse amor não resistira e morrera tragicamente. Lara incompreensivelmente tivera uma grande depressão, mudara de casa e em simultâneo terminara a sociedade que mantinha com o seu amigo no stand de automóveis. O seu telefone permanecera para sempre com o número não atribuído. Afonso, que desesperadamente e em vão durante algum tempo a tentara encontrar, perdera a esperança de a voltar a ver. Confortara-se apenas na ideia de que Marta não mais faria sofrer Lara.





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