segunda-feira, 5 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




IV Capítulo

 

(Dois anos depois...)


Naquela quinta feira, noite do último dia de Dezembro, chovia torrencialmente.
Estava uma daquelas noites medonhas. O céu negro, a espaços de tempo pequenos, rasgava-se em raios luminosos e fulminantes, criando um espectáculo misto de beleza e de respeitável receio, secundados pelo fragor infernal dos  trovões ensurdecedores, numa sobreposição de desordem amotinada.
A estrada secundária sem iluminação, mais parecia um rio na sua interminável corrente. O limpa pára brisas do carro não dava escoamento à  chuva forte e incessante que o céu parecia querer despejar sobre aquele lugar.
Eram quase oito horas da noite, Afonso como sempre e à última da hora, tinha finalmente decidido onde, como e com quem iria fazer a sua entrada no novo  ano. Também como sempre, estava atrasado e começava a demonstrar um ligeiro sinal de arrependimento por essa sua tardia decisão.
Pelas suas contas ainda faltavam cerca de quarenta  minutos, para se juntar aos amigos, pesasse embora o adverso temporal, que se abatia surpreendentemente  por aquelas bandas, obrigando-o a uma condução mais atenta e de redobrado cuidado.
Edite e João, um casal amigo de Afonso, dos tempos de liceu, mas que devido a razões profissionais de João estava já à algum tempo a viver no Algarve, tinham-no encontrado num restaurante em Lisboa umas semanas antes. Fora um reencontro muito agradável, e entre felizes e infinitas recordações, fizeram-lhe um convite, uma espécie de reunião de amigos, de longa data e outros mais recentes, para esse final de ano.
Recentemente tinham adquirido um monte no baixo Alentejo, perto de Santana da Serra, a aldeia onde nascera a mãe de Afonso.
Ele  era um dos últimos convidados. Parecera-lhe uma óptima ideia. Um fim de semana prolongado, fora  da habitual confusão que  Lisboa e as grandes cidades oferecem no final do ano, num aprazível e sossegado lugar, entre velhos amigos. Trocaram números de telefone, combinaram voltar a ligar, para ultimar pormenores, mas Afonso, embora ficasse muito agradado com o convite, deixara a habitual reserva, da sua definitiva decisão só ser tomada perto dessa data.
O convite tinha sido extensivo a Rute, namorada recente de Afonso, que o acompanhava nesse jantar. Também ela, mostrando-se agradecida, tinha adorado a ideia.
A resposta afirmativa fora dada nessa mesma quinta feira, umas horas antes, não sem  Edite ter insistido teimosamente para que não faltasse. Ficaria muito triste se Afonso não fosse. Pediu-lhe que não os decepcionasse, gostaria muito que Afonso os presenteasse com a sua presença nesse fim de semana.
Edite tinha sido namorada de Afonso durante dois anos, logo a seguir a terminarem o liceu. Tinham uma relação muito forte e apaixonada, sustentada numa grande amizade e confiança, valores que Afonso e Edite acreditavam serem dos mais importantes numa relação a dois. Quando do seu reencontro, nesse jantar, perceberam ambos o que perderam. Tinham gostado de saber que mesmo depois dessa relação ter terminado, ainda  mantinham esses valores, pelo menos a amizade, já que no que dizia respeito à confiança, ela tinha sido ignorada e completamente desprezada...por Afonso..
Não a tinha enganado, apenas a trocara por Carla, irmã mais velha de Edite, praticamente no dia a seguir, em que haviam terminado abruptamente e sem explicação, esse relacionamento de dois anos.
Afonso sentira que depois de dois anos de namoro, as decisões  que  a seguir  teria de tomar, lhe trariam inevitavelmente outro tipo de  responsabilidades. A qualquer momento estariam casados. Com dois ou três filhos, completamente ancorado, num belo, majestoso e pacífico porto de abrigo, que Edite lhe ofereceria,  mas ancorado para sempre. Mesmo amando muito Edite, fora egoísta, pensara em demasia talvez, no seu egocentrismo, na sua suposta falta de liberdade, nas muralhas que minuciosamente inventara, e decidira de um dia para o outro terminar a relação que mantinha com Edite.
Esse reencontro com Edite, trouxera-lha à memória um turbilhão misto de agradáveis e angustiantes lembranças, sabia que lhe tinha dado um tremendo desgosto. Sentira até uma ponta de remorso e ciúme. Edite parecia ser feliz com João, e continuava a ser uma bela mulher. Apesar de já ter sido mãe de dois filhos, e de estar à beira de completar trinta e oito anos, mantinha aquela jovial presença que sempre a caracterizara. Reservada mas simultaneamente extrovertida. Aliada à sua inegável beleza mantivera sempre uma postura, que ocasionalmente, mesmo entre amigos e amigas, dava azo a que a criticassem pela sua suposta pose altiva e até arrogante.
A irmã, Carla não chegara a aquecer os lençóis. Menos de dois meses
depois e já Afonso partira noutra curta aventura. Era quase sempre assim. Um longo relacionamento terminado, dava sempre lugar a uma infindável lista de curtas, decepcionantes e algumas perigosas relações.
Tentava lembrar-se por curiosidade, das mulheres que o tinham marcado e feito parte da sua vida, entre Edite e Rute, passando pelo seu casamento de um ano, pelo seu inferno de nove meses com Marta. Recordou-se de Luciana, muito mais velha que ele na altura, a  mais curta da sua vida, numa quente noite de Verão quando tinha apenas dezassete anos,  numa praia de Cascais, que dava pelo curioso e singular nome de... praia de Santa Marta
Intermináveis emoções que lhe chegavam numa agradável retrospectiva. Tinha-as respeitado, achava que sim, Como pessoas, como mulheres, como seres iguais a ele próprio, algumas até com menos vontade do que ele, em terem um relacionamento prolongado. Tinha a certeza que salvo uma ou duas excepções, se eventualmente  o seu caminho algum dia se cruzasse com alguma delas, seria sempre um agradável e amistoso reencontro, reacendendo em alguns casos, uma antiga mas renovada paixão.
Passara das trinta, tentara mentalmente alinhar a sua vida nesses períodos e recordar-se de todas, assim como as situações e peripécias desses tempos. Também as que conhecera antes de Edite, tendo sido subitamente interrompido por Cristina que o acompanhava nessa mesma noite.
A estação de serviço, finalmente! Cristina alertava-o, apontado para os reclamos luminosos que do seu lado direito, à beira da estrada, a menos de cem metros de distância, iluminavam ténuemente  aquela noite infernal. Afonso já tinha reduzido a velocidade uns quilómetros atrás. Sabia que estavam perto dessa bomba de gasolina. Era uma questão de minutos, até chegarem àquele local, fustigado por aquela tremenda tempestade.
Tinha pouca gasolina, tinha-o comentado no início da viagem, com Cristina, que apercebendo-se dos seus momentâneos e ocultos pensamentos o chamara de volta à terra, acordando-o daquela abstracta investigação.
E estava mesmo distraído, tinham sido curtos mas infindáveis minutos que o tinham levado para longe dali, temporal e emocionalmente.
Deserta. Era assim que se encontrava a estação de serviço. Lá dentro apenas um preguiçoso e indolente funcionário, que se levantou vagarosamente e se dirigiu com uma irritante e soturna calma para o carro.
Sem um normal cumprimento de boas noites, num típico e arrastado sotaque do baixo Alentejo, perguntou-lhe quanto iria ser de gasolina, revelando uma indisfarçável vontade de se despachar rapidamente  e voltar para as suas ociosas tarefas.
Afonso compreendeu aquela suposta e inusitada falta de educação. Não fora por mal de certeza. Um homem sozinho, naquele lugar ermo, naquela noite intragável. No lugar dele faria provavelmente o mesmo. Até já se teria ido embora para casa, pensou, ao mesmo tempo que indicava ao homem para que atestasse o depósito.
Cristina e Afonso dirigiram-se para dentro da estação de serviço. Folheando uma revista, desinteressadamente, Cristina pegou numas pequenas embalagens de chocolate, enquanto Afonso se preparava para tirar dois cafés instantâneos.
- Curto? – Perguntou a Cristina. Ainda mal conhecia os seus hábitos. Tinham sido apresentados por amigos comuns, numa das inúmeras ocasiões a que Afonso se juntava para praticar paint ball.
Tinham feito parte da mesma equipa e desenvolvido uma empatia não muito grande mas de cordial entendimento e companheirismo.
Fora exactamente à quinze dias. Cristina, divorciada, pequena empresária, um filho menor, dois anos mais velha que Afonso, simpática, mas longe de fazer o seu género. Fisicamente estava mesmo muito longe, nem sequer a achava muito atraente. Não fora a sua simpatia irradiante, sempre estampada num sorriso aberto e sincero e a sua denotada inteligência, duas características  que achava não serem compatíveis, e não estariam ali os dois. Tinha a noção de que Cristina pensava exactamente o mesmo sobre ele. Estavam os dois sem qualquer compromisso de carácter emocional. Apenas se sentiam atraídos um pelo outro sexualmente, apenas isso, nada mais. Nessa altura tanto a Afonso como a Cristina agradavam-lhes o facto de estarem sozinhos, praticamente e só com essa intenção, o de se satisfazerem sexualmente, temporariamente e sem compromissos, jantarem de vez em quando, beberem um copo e pouco mais.
- São cinquenta e oito euros - Disse o empregado.
- A gasolina, a revista  e os chocolates, querem mais alguma coisa?- disparou secamente, manifestando uma irrefutável vontade de os despachar  rapidamente.
Afonso pagou, ainda disse meio a brincar para o homem fechar e se ir embora depressa, pois com o tempo que estava e a aproximação da hora do final de ano, eles seriam concerteza os últimos clientes.
Desde as cinco horas da tarde, que segundo o empregado, não parava ali ninguém. Dera-se ao trabalho de inclusivamente contar  as cerca de uma dezena de viaturas que por ali passaram, desde essa hora até que começara a dormitar. Entretanto tinha chegado Afonso que praticamente o acordara.
Realmente já não faltaria muito tempo, iria telefonar à filha mais velha, para o ir buscar de carro, pois o tempo lá fora continuava assustadoramente mau e não se aventurava a ir para a aldeia, que distava ainda cerca de dez quilómetros dali, montado na sua pequena e velhinha motorizada.

Ainda comentaram a anormal tempestade, pois Afonso dizendo-lhe que tinha passado ali grande parte da juventude, não se lembrava de um temporal assim. O homem visivelmente distante ainda concordou. Ainda lhe disse que se lembrava das grandes tempestades que antigamente assolavam aquela região, mas habitualmente nos meses de Novembro e Março. Eram dilúvios aterradores e constantes que transformavam  os pequenos e sinuosos barrancos em autênticos mares revoltos de pedras e lama, afogando pastos e sobreiros. Ainda recordaram as trovoadas de Janeiro e Agosto, habitualmente mais perigosas devido ao tempo seco que se fazia sentir no Baixo Alentejo. Ficaram por ali. Um imenso e magnífico clarão de um raio  a descer vertiginosamente pelo céu, seguido de um estrondoso trovão silenciara-os, na voz e no pensamento. Cristina dera um grito e um salto, contagiando Afonso naquele receio. Colocando-lhe mecânica e friamente a mão no ombro, acalmou-a, abraçando-a em seguida, sem sentir qualquer emoção, sem uma única palavra de conforto ou de carinho. 
- Vamos embora Afonso – Disse com a voz vaga, afastando-se na direcção da porta de saída, sem olhar para trás, nitidamente decepcionada e desiludida, com a insensibilidade e quase indiferença naquele abraço de Afonso.
- Vamos! – Respondeu Afonso, pegando no saco das compras.
Com um desejo mútuo de umas boas entradas,  despediram-se. Lá fora um potente par de faróis, varrendo vagarosamente a estrada, a cerca de quinhentos metros da estação de serviço, revelava a aproximação de uma viatura em trânsito por ali, seguindo no sentido inverso ao que Afonso se preparava para retomar.










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