segunda-feira, 30 de maio de 2011

Lugar de mim.







Sei de um lugar no mundo
Onde as crianças já não choram,
Onde a fome e as bombas não chegam,
E na vontade dos homens se demoram,
Onde eu sou apenas um pequeno vagabundo.

Onde homens, nem donos nem senhores,
Não esmagam ideias nem calam as revoltas,
Cantadas em doces manhãs pelos trovadores
Do sol que sempre se cumpre nos dias,
Aquecendo as terras molhadas de mil odores.

Esse lugar fica perto daqui,
Na curta distância de um pequeno desejo,
Ao alcance demorado de um beijo,
Num passo que dou consentido,
Na vontade que eu sempre tenho de ti.

Sei que a noite não é o fim do dia,
E as estrelas não ficam inertes, paradas,
Cintilam e iluminam infindáveis escadas,
De degraus brancos de pedra,
Reflectindo em ti tudo aquilo que eu seria.

Não existem sombras nem falsos caminhos,
Apenas silhuetas vagas de múltiplas cores,
Paletas de ouro e prata, nas mãos de pintores,
Que nos pintam os amigos e algumas
Paisagens onde não estaremos sozinhos.


JMC In Redenção




sexta-feira, 27 de maio de 2011

Alentejo...longa seara de desejo.




Vi-te, a ti Alentejo
Sofrer como ninguém,
Das tuas searas de desejo,
Teus filhos vi
Abandonar; irmãos de minha mãe.

Vi-te, nos olhos a tristeza,
Teus montes de branco caiados.
Vi-te ficar só, camponesa,
Também só,
Te vi ser chorado.

Vi tua paisagem serena,
De planícies soalheiras.
Vi não valer a pena
Homens, sentados
Ao serão das tuas lareiras.

Vi-te pastor sem ceia,
Sem rebanhos para guardar,
Sem crianças, a aldeia,
Sem futuro,
Vi-te também abalar.

Minha terra de mel
Que o Sol sempre aquece,
Porque te amarga o fel
As entranhas,
De ti e de quem te apetece.

Vi-te homem sem jorna,
Moleiro sem trigo, a moer
A azenha que já não torna
Os grãos em farinha,
O forno sem pão para cozer.

Vi-te linda ceifeira,
Sem joio para separar,
Vi-te no chão, a peneira
E a magana da vida,
Que não te deixa mais ceifar.

Vi-te ficar além Tejo,
Por entre barrancos de vida,
Perdi-te já não te vejo,
Nem oiço em ti,
Minha infância perdida.

Digo-te a saudade,
Que nunca foi adeus.
É apenas e só vontade
De para ti voltar,
E nascer, filhos meus.

JMC In Contradição





segunda-feira, 23 de maio de 2011

Epitáfio




Vejo-me no suicídio que sinto à espreita,
No ódio que me começa no corpo a estropiar,
Não esperem que assista ao meu julgamento,
Na morte digo-te adeus, cobarde maleita,
Perdes-me a vida, como a brisa se perde no vento.

Acho as cinzas no vale de sombras enlutado,
Onde me envolvo em seus defuntos odores,
Das campas abertas e epitáfios perdidos,
Onde recordo o silêncio profundo e calado,
De noites mortas e de carrascos vendidos.

Mantos de tons púrpura ensanguentados,
Cobrem-me a consciência sem minha vontade,
São altares de pedra fria em templos vazios,
São tempos idos, em tempos por si acabados,
Irmãos que se exterminam na irmandade.

Oiço o favor fazer do mísero, homem maior,
No fúnebre discurso, de suas vestes enlutadas,
Choram-se lágrimas passadas em falso fervor,
Dão-se as preces na troca de vidas acabadas,
E eu tento a hipocrisia, que me tenta melhor.

A soberba invade falsos amigos na denuncia,
A vaidade vai desnudar todas as aparências,
Dás-me a inveja que penetra sem renuncia,
Sem merecer os esgares de condolências,
Transparentes numa lágrima que se anuncia.

JMC In Redenção



quinta-feira, 19 de maio de 2011

Ausência



Já não te reconheço neste lugar,
Nem à doce mentira da manhã,
Que me dizes na dor da tua traição,
Digo não ao teu absoluto desejo,
Redentor da tua mórbida ilusão.

É ávida a cobiça que te apraz,
E que nos consome a liberdade
De todos nós, eu que não fui capaz,
Do aviso, na minha voz dormente,
Feita silêncio contra a minha vontade.

São teus preferidos os incautos,
Os fracos que moram na inocência,
Os que lutam como teus arautos,
Libertando a revolta dos sentidos,
Apregoando a nossa inexistência.

Tens a vantagem de não sofrer,
Porque não sentes a noite a chegar,
Porque não alcanças a vida
Dos que bebem a sofreguidão,
E a ínfima vontade de não voltar.

Tens os teus demónios por soltar,
Chacais famintos por corpos caídos,
Tens sacerdotes para te absolver
Dos pecados que vamos encontrar,
No entretanto em que ficamos feridos.
JMC In Punição



terça-feira, 17 de maio de 2011

Esplendor



Odeio a regra que sufoca a excepção,
Assim como os únicos sentidos,
Como aqueles que vivem em vão,
Amordaçados,
Vagueando pelo seu mundo... perdidos.

E todos os limites do excesso,
Nas linhas que os homens inventam,
Dividindo as nações que atravesso,
Num pensamento,
Sem as fronteiras que nos apoquentam.

Nas mentes da nossa hipocrisia,
Odeio os dirigentes da lucidez,
Que socorrem a noite do dia,
Protegendo
A fome e a miséria da sua avidez.

Posso parecer algo que já não sou,
Sendo muito menos do que quero ser,
Como podem pensar que ainda aqui estou,
Quando afinal, sem nada vos dizer,
Parti sem saber para onde vou.

JMC In Punição




segunda-feira, 16 de maio de 2011

Linhas




Nestas linhas bruscas, paralelas, vislumbro a tua coragem,
Levam-me neste trem, onde deixo a minha vida adiante,
Nas tuas mãos eu sigo sem medo de interromper a viagem,
Sem amarguras ou tristezas que me foram uma constante.

Embarques, desembarques, a minha outra vida ficou distante,
Estou de mãos vazias, estou pobre, mas não viajo em vão,
Espero-te nesta linha, sem querer mais que um teu instante,
Viajando comigo, descendo a meu lado na mesma estação.

Circulo já sem querer a saudade do que foi meu passado,
Prevejo o aço frio deste novo caminho de ferro com sentido,
Prevejo a fantasia de um sem rumo como fui anunciado,
Cerro os olhos para te sonhar, dou-te o meu corpo despido.

Em cada paragem deixo-me esvair por me sentir atrasado,
A paisagem faz-me a mudança em tempo que eu acho fugaz,
Felicitam-me por estar a caminho e nesta linha quase parado,
Desafia-me a esperança e a tua espera que me deixa incapaz.

A última estação fica no infinito desta linha que eu imaginei,
És o meu único trajecto, a demora que em nós quis acreditar,
Quem descobriu esta linha férrea foi um amor que eu sonhei,
Um desejo que sobreviveu, um doce querer de em ti viajar.

JMC In Redenção



quinta-feira, 12 de maio de 2011

Lágrimas mudas



Por quanto tempo mais chora o mundo em vão,
Quantas mais lágrimas cairão num imenso segredo,
Quantas mais verei derramar no sentido deste medo,
Sentindo que apenas são as gotas de uma imensidão,
Uma seguida de tantas outras, caindo transparentes,
Caindo pelo rosto de uma criança que nasce mulher,
De uma fome e da guerra que não choram inocentes,
Lágrima ante os sorrisos da farda suja que todos fere.

Desaparecendo em solo árido e seco desventrado,
Lágrima que solta um adeus depois da tua partida,
Como a lágrima que recebe este amor regressado,
Chorando de mãos abertas na má sorte de uma vida,
Sábios lavam as almas juntando cada gota de cristal,
Mesmo as lágrimas derramadas sem a luz da razão,
São de rostos tristes que sofrem o silêncio de um mal,
Chorando ricos e pobres, iguais na mesma condição.

Existem lágrimas que riem de uma ténue esperança,
Existindo naquelas que são melodia no seu doce cair,
Eu já me conheci no pranto de quem quis a vingança,
Por mim outros já se enlutaram por julgar o meu partir.
Já choraram sem valer a pena o erguer de uma espada,
Como se uma lágrima bastasse para ouvir um grito mudo,
Transbordando dos mares como onda de espuma gelada,
E num sussurro, uma só lágrima nos pudesse dizer tudo.

JMC In Redenção


terça-feira, 3 de maio de 2011

Sociedade clandestina



Nos vestígios da noite procuram-se ritos urbanos,
Aproximam-se rostos famintos em passos vendidos,
As sombras inertes ocultam os silêncios profanos,
Nos bares abertos, perdem-se nos corpos despidos.

No ócio das janelas revelam-se às ruas incertas,
Restos de gente, algumas testemunhas disfarçadas,
Violadores que espreitam as outras almas desertas,
Rastos de sangue nas veias vazias e amordaçadas.

Contam fábulas, os velhos mas ninguém adormece,
A cidade só, acorda quando os teus olhos se fecham,
Lança-se o tráfico, enquanto num grito se esquece,
Mulheres e as esquinas dos clientes que se invejam.

Montras iluminam inertes manequins sofisticados,
Sirenes passam, a surdez faz-nos perder os sentidos,
As fardas declaram-se, e nos corpos dos indesejados,
Algemam punhos miseráveis sem revolta dos vencidos.

Abrigam-se os pedintes nas frias escadas do medo,
Uivam cães famintos, mordem o ódio da raiva forçada,
Passos sem dono apressam-nos, jazem no segredo,
Vagueando sem destino qualquer ou alguma morada.

Os clérigos indigentes proclamam suas misericórdias,
Hábitos decorrentes trajam moribundos escondidos,
Homens de fés diferentes encobrem suas discórdias,
Pragas divinas dividem solenes os que foram escolhidos.

Os subúrbios acolhem os fugitivos desintegrados,
Os gatilhos dispersam a agonia da bala peregrina,
A sociedade furtiva espera os mutantes policiados,
E a cidade determina uma liberdade clandestina.

JMC In Redenção