quinta-feira, 1 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




I Capítulo



Já na estrada de alcatrão meio esburacada, o ponteiro do conta quilómetros avançava vertiginosamente. O seu pé direito pisava com vigor o acelerador como se receasse alguém que o perseguisse, como se tivesse acabado de cometer um crime e dali quisesse fugir rapidamente sem deixar hipótese a alguém de o apanhar. Conduzia desenfreadamente como um louco, numa corrida, numa fuga desesperada, o Mercedes CLK de gama alta  resistia, parecendo ele com vida própria querer ser cúmplice naquela fuga.
Nesses  breves e simultãneamente longos minutos de adrenalina, sentiu que a sua atitude era a de um cobarde, que raio! Ao que  chega um  ser  humano,  pensou. 
Não encontrava justificação para um acto que sempre classificara de cobardia, o de fugir, e isso irritava-o, mas tinha de ser assim, era impensável voltar atrás, na decisão e no rumo.
Um pouco mais de dois minutos, foi o tempo que demorou a atravessar a povoação e a entrar na estrada que atravessava a pequena lezíria. Recordou que Marta aquela hora, estaria possivelmente a caminho de casa e não seria de estranhar que a qualquer momento, no sentido contrário se cruzasse na estrada com ela. Então decidiu ligar-lhe. Sobre o não atendimento do telefone minutos atrás, desculpar-se-ia com o facto de se encontrar a conduzir, e assim poderia também aperceber-se do sítio exacto onde ela estaria nesse momento, para eventualmente ainda conseguir mudar para a estrada de terra batida que atravessava os longos campos de arroz.
Reduziu a velocidade, pegou no telefone, mas não necessitou de lhe ligar, pois ela estava a ligar-lhe nesse preciso momento, atendeu e como de costume o interrogatório ditatorial começara. Onde estava para não atender o telefone, com quem estava, porque a fazia sofrer assim? Disse-lhe exactamente o que tinha pensado dizer. Não a pudera atender, porque estava a conduzir. Mentiu-lhe dizendo que ia a caminho de casa, era provável que até chegasse primeiro, e de seguida perguntou-lhe onde estava ela. Marta depois de outras tantas  desconfiadas observações, abeirando-se de um puro e injustificado histerismo, completamente alterada, lá se acalmou um pouco, confessando-lhe que estava na auto estrada, perto de Vila Franca de Xira. Afonso sentiu-se desconfortável, pois de onde se encontrava até Vila Franca, ainda eram cerca de dez minutos, e a andar depressa. O risco que corria de se cruzar com Marta era iminente. Disfarçando o seu inevitável nervosismo, afirmou que se encontrava à saída da segunda circular, ainda em plena Lisboa, portanto uns bons quilómetros atrás dela. Pediu-lhe para que fosse mais devagar, pois assim ainda haveria chance de a apanhar e poderiam chegar ao mesmo tempo. Marta pareceu acreditar e disse-lhe que o amava muito. Pediu-lhe perdão pela discussão, que mais uma vez tiveram nessa manhã, mais uma entre muitas outras. Quando chegassem a casa iria compensá-lo, talvez um jantar especial seguido de mais uma noite de volúpia sexual. Esta seria a última vez que desconfiaria dele, Acreditava que Afonso nunca a enganaria, mas neste momento Afonso já não a ouvia, apenas se recordava dos inúmeros pedidos de perdão, das violentas discussões, dos momentos infindáveis de infelicidade que Marta lhe tinha proporcionado. Nos curtos, mas constantes momentos de prazer sexual, que se seguiam aos aterrorizadores e ameaçadores gritos, acompanhados da pseudo auto mutilação.
Por momentos esqueceu-se do essencial, tinha de andar depressa, disse-lhe que a perdoava, que a amava também, que falariam com calma quando estivessem juntos, fez-lhe  crer que era uma questão de
minutos e isso pareceu acalmá-la, deu-lhe um beijo ao mesmo tempo que desligava o telefone.
Por esta altura já o carro voava novamente, tinha de entrar na auto estrada rapidamente, e esse minutos pareceram-lhe anos, nunca achara a distância tão comprida, tão dolorosamente longa. A paisagem que outrora o seduzira, que tantas vezes lhe deixara um eterno raiar de felicidade no olhar, essa mesma que o obrigava ás vezes a abrandar e mesmo a parar para contemplar o rio Tejo a possuir languidamente as terras baixas dos arrozais, a acariciar nas marés altas os terrenos já de si humedecidos, mas desejosos dos seus braços, parecendo dois amantes, a terra fértil e o rio fecundo e ávido na sua sedução.
Fora neste idílico e romântico cenário que tinham feito amor pela primeira vez, também assim num fim de tarde de céu limpo, com o sol no seu ocaso como testemunha, era princípio de Maio, e os dias primaveris já crescidos proporcionavam tardes quentes e soalheiras, na lezíria ribatejana, era também a primeira vez que se deslocava a casa dela.
Recordava agora como se sentira nesse dia, tinham acabado de se conhecer uma semana antes, e tinham passado a tarde desse sábado juntos, lancharam e passearam pela  Expo, ela falara-lhe da casa que tinha em Salvaterra de Magos, meio abandonada, um jardim enorme por cuidar à muito. Falara-lhe de como era bom acordar de manhã, vir descalça até ao alpendre, sentar-se numa velha cadeira de balouço, ouvir o matinal chilrear dos pardais num vai vem constante entre o telhado e o velho carvalho plantado no jardim. Depois contara-lhe como era o por do sol, das tardes infindáveis, dos intermináveis momentos que passava a olhar o horizonte, como se à espera de alguém, das noites que chegavam sempre demasiado depressa e que a obrigavam a recolher-se numa casa fria, sozinha, numa imensa e desesperada solidão.
Tinha-lhe descrito na perfeição as gentes, a terra, a sua situação de mulher divorciada, de um marido, da família e também da vida. Tinha reparado que enquanto decorria essa exaustiva mas emocionada descrição as lágrimas se assomavam no seu olhar, despenhando-se lentamente pela sua face, e ele que habitualmente era uma pessoa fria, egocêntrica e calculista tinha sentido uma ponta de emoção e começara a sentir uma imensa atracção por ela, não só emocional mas também física.
Marta era muito bonita, de estatura média, magra, um rosto bem delineado, salpicado com umas pequenas sardas que lhe davam um ar de adolescente malandra, os seus olhos verdes acizentados demonstravam uma avidez pela vida constante, ao mesmo tempo que se entristeciam e embaciavam com a descrição da sua solidão. Tinha cabelos louros, que não sendo a sua cor natural completavam na perfeição a sua face de menina perdida.
E era nisso que Afonso mais reparara e o interessara. Uma mulher só, com ar de estar perdida, num mundo que já não compreendia, num mundo que pela sua descrição a tinha abandonado.
Os seus seios eram oponentes, aliás até lhe tinham parecido desproporcionados face ao seu corpo franzino mas aparentavam ser firmes e perfeitos, a sua boca e os lábios finos quando se alongavam no seu sorriso tímido mostravam uns dentes brancos e bem cuidados.
Mas foram as suas mãos que o deixaram mais impressionado, não só pelos seus dedos esguios e perfeitos, mas sobretudo pelo seu toque. Ainda não se tinham beijado na face, ela insistia que se deveriam cumprimentar de aperto de mão, pois ainda não tinham intimidade para tanto, achara estranho e ridículo e ao mesmo tempo intrigante, o que o deixava ainda com mais vontade de a seduzir. O seu aperto de mão era forte e vigoroso como se de um homem se tratasse, mas a sua pele era branca e aveludada e de cada vez que apertava a sua mão sentia uma vontade tremenda de a erguer e beijar, o que acabaria por fazer nesse dia.
Tinha reparado que ela embora com uma evidente timidez, ou talvez um receio infundado, pois seria mais isso, como se veio a revelar mais tarde, também parecia sentir-se atraída por ele.
Sentindo que nada teria a perder e que no fundo era um bom pretexto para continuar a sua já evidente vontade em seduzi-la arriscou e perguntou-lhe quando é que ela o levaria a conhecer a sua casa, esse local idílico, onde ela se sentia tão amarguradamente sozinha. Marta depois de conveniente e disfarçadamente se mostrar pouco á vontade, respondeu-lhe que se cada um fosse no seu carro, querendo-lhe dizer com isto que assim ele poderia e deveria regressar sozinho, não dando azo a que ele pudesse lá ficar. Teria gosto em mostrar-lhe a casa nesse mesmo fim de tarde, frisando que era a primeira vez após os quatro longos anos de divórcio, que lá levaria alguém... homem claro. Pois a sua condição de divorciada e sozinha, seria motivo de falatório numa terra onde todos se conhecem e se cumprimentam regularmente.
Assim fizeram, cada um no seu carro. Ele seguiu-a e já no caminho começara a congeminar e a imaginar como iria ser, sentia um enorme nervosismo e receio pois à muito que não sentia uma atracção tão forte por uma mulher. Ela parecia reunir tudo aquilo que o atraía numa mulher, era bonita, era muito educada, tinha um olhar penetrante, como se o quisesse conhecer no seu mais profundo íntimo. Parecia também simpatizar e estar interessada nele, e o seu estado era igual ao dele...descomprometida. Afonso achava que depois do seu atribulado divórcio, tinha encontrado realmente alguém em que valesse a pena apostar, pois todos os relacionamentos que tinha tido anteriormente, tinham sido mais uma série sucessiva de fracassos. Nos dois anos imediatamente a seguir à sua separação tinha levado uma vida de boémia e começava a ficar um pouco saturado, farto e até decepcionado com ele próprio. Eram constantes as mulheres que entravam e saíam na sua vida, sempre com passagens curtas e sem grande paixão. Marta sim, era uma  mulher  espantosa, sem aparentar qualquer tipo de futilidade, demonstrando também ela que estaria interessada numa relação duradoura, alicerçada em valores que ele julgava já não existirem nos tempos que correm.
O seu coração palpitava só de pensar nisso, sentia que estava definitivamente apaixonado.
Saíram da auto estrada em Vila Franca. Começara a elaborar um  plano, quando entrassem na sua casa, aproveitando talvez o final de tarde, no alpendre que ela lhe tinha descrito, colocar-se-ia ao seu lado, pegar-lhe-ia na mão e tentaria com um comentário breve ao cenário que ela lhe tinha descrito do por do sol, beijá-la novamente pois tinha na memória todos os pormenores de que ela parecia ter gostado, e esse era um dos que sobre o qual ela tinha manifestado algum nervosismo, pouco à vontade, mas ao mesmo tempo um sorriso de indisfarçável prazer. O que sucederia a seguir já não imaginava com muita clareza, pois essa excitação fizera-lhe passar  um turbilhão de imagens sem nexo mas extremamente apetecíveis, apaixonada e sexualmente excitantes.
Ainda estaria a pensar nisso quando ela lhe fez sinal com o braço de fora da janela do carro para abrandar. Achou que ela queria mostrar-lhe algo, ou dizer-lhe alguma coisa antes de chegar a casa.
Ela parou o carro, encostando-o à berma do lado direito, na estrada estreita e meio esburacada, ele fez o mesmo parando o carro logo atrás do dela.
Saindo os dois ao mesmo tempo perguntara-lhe, o que tinha sucedido, se algo não estava bem, ela respondeu-lhe, que estava tudo bem, ainda faltavam alguns quilómetros até chegar a casa dela, mas gostava de lhe mostrar uma coisa. Pediu-lhe para trancar o carro, pois o que lhe queria mostrar estava a alguns metros dali e teriam de atravessar a estrada para o outro lado. Disse-lhe que não se preocupasse pois ali prácticamente não existia trânsito e o seu carro estaria seguro até ao seu breve regresso. Assim fez e ao dirigir-se para
o local onde ela estava, ela estendeu-lhe a mão.
Sentiu um arrepio enorme pela espinha, as pernas vacilaram, o coração parecia querer saltar-lhe do peito, sentiu um desconforto enorme, as suas mãos estavam completamente molhadas, quis dizer  algo, mas nada lhe ocorrera naquele momento, rápida e disfarçadamente tossira, ela perguntou-lhe se estava tudo bem, se não se importava de fazerem aquela paragem, ele ainda a tentar recompor-se, disse-lhe meio a brincar que se valesse a pena não se importaria, disse-o com um sorriso inocente, ela confirmou-lhe que não ficaria arrependido e no mesmo instante beijou-o suavemente  na face.
Ele sentia-se completamente desconcertado, mas infinitivamente feliz.
Quase a correr como duas crianças, passaram pelo matagal que cercava a estrada, atravessaram um campo de cultivo. Uns metros á frente, alinhados, uns enormes e frondosos salgueiros  pareciam sentinelas, fazendo uma guarda de honra ao rio que se espraiava pela lezíria nos seus imensos braços, a paisagem era encantadora.
A já ténue luz do sol abrilhantava o espectáculo, dando um toque de magia. O rio retribuía o reflexo em cintilantes pedaços espelhados nos seus olhos. Sentiu a mão dela apertar ainda mais a sua, sentiu o seu coração cada vez mais acelerado, nesse momento desejou que o tempo parasse ali, deslumbrado e com alguma timidez olhou em redor até não resistir mais e enquanto também retribuía o aperto na mão dela, olho-a então fixamente, reparou que os olhos dela tinham sido também contagiados... irradiavam uma  estranha luz, levemente humedecidos, não resistiu, e sem hesitar puxou-a para si e beijou-a. Apertou o peito dela contra o seu, sentiu o coração dela no seu peito ofegante, isso deixou-o um pouco mais confiante, ela sem dúvida estava também a sentir algo de muito forte por ele, apertou-a ainda mais contra si, sentia um fogo a arder dentro de si como à muito não pensava vir a sentir, ela estava a ficar completamente louca, desapertara-lhe a camisa, recordava-se que lhe arrancara uns botões, estando os seus corpos nessa altura a pensar como um só,  porque a mente, essa já não existia, num gesto meio brusco mas terno dobrou-se sobre ela, e com um movimento rápido, deixaram-se cair no campo cultivado...

2 comentários:

  1. Foi bom ler-te! Paixões assim são um prejuízo em roupa mas valem a pena... ;)

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  2. José Miguel,
    "Inquietude ou solidão dos sentidos" é um adoptar de letras e, palavras que enovelam luxuosamente, paradisiacamente e, requintadamente quem privilegia da sua leitura.

    Imaginativo e, ou real as palavras revelam um autor detentor de um dom especial … a escrita.

    Ana

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