quinta-feira, 14 de junho de 2012

Existem momentos...em que pensamos, em que queremos que esses momentos se concretizem. Não se deve apenas e só tratar de esperança, mas sim de acreditar que existem amores impossíveis, capazes de nos fazer felizes em momentos destes...

quinta-feira, 15 de março de 2012

Receios ocultos




Telas de tinta bárbara iluminam um raro esplendor,
A luz fecha-se negra enquanto as almas adormecem,

Ficamos de pé, cai uma lágrima de mulher desejada,
Cruzam-se os braços, desviam-se olhares de pudor,
Cínico, não me separo dos outros que te reconhecem.

Existe um medo que por agora nos prende sem dor,
Desejos ardentes que sobram de uma intensa vontade,
Pintas-me num quadro negro com a mesma nitidez,
As aguarelas sóbrias descobrem-nos na tua verdade,
Os traços são alguns riscos eróticos da nossa nudez.

À luz do dia caem lágrimas de amor transparente,
Esperanças esquecidas e um sonho fragilizado,
Perdemos o horizonte quando baixamos o olhar,
Ocultamos os sentidos, mostrando o receio aparente,
Quadros brancos enlutam a sala que nos deixa ficar.

JMC In Redenção

quarta-feira, 7 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...



VI Capítulo

 

( Enigma)

Sentiu o telefone a vibrar. Tinha-o deixado em cima da pequena estante de mogno que mantinha teimosa e inesteticamente a um dos cantos da sua sala. Olhou para o relógio, passavam 35 minutos da meia noite. Quem seria? Aquela hora? Ainda meio atordoado pela carta de Lídia e pelos pensamentos a que ela o tinham levado, fez tenção de se levantar, indolente e vagarosamente, demorou tanto tempo a chegar ao telemóvel que ele entretanto parou de vibrar.
Recuou, pegou no maço de cigarros,  retirou um e acendeu-o. Pegou no telemóvel e encaminhou-se para a larga janela abrindo-a.
Sentiu um frio lancinante entrar pela sala, era Dezembro e aquela noite avizinhava-se vir a ficar ainda mais fria. Enquanto expirava para fora num longo sopro brando e morno o fumo de uma vigorosa passa, desbloqueou o telemóvel.
A chamada era de Teresa, a sua ex. mulher.
Teresa? O que quereria? Antes de pensar sequer em responder ou mesmo compreender, o telefone voltou a vibrar, Teresa novamente.
Levou um segundo a pensar, atendeu.
Do outro lado.
- Boa noite Afonso, acordei-te?
- Não! Disse laconicamente, boa noite também para ti, está tudo bem contigo?
- Está! E contigo? Estavas acordado?
- Comigo está tudo bem, estava aqui apenas sem sono a fumar um cigarro, mas estava preparar-me para me deitar. Então o que me querias?
- Nada de especial, apenas se querias ir tomar um café comigo amanhã?
- Um café? Amanhã? Só isso?
- Sim. Gostava de falar contigo, era importante para mim.
- É assim tão importante, que precisasses de me ligar a esta hora?- Disse Afonso algo intrigado.
- Não me queres adiantar mais nada e dizer do que se trata?
- Não! Preferia dizer-to pessoalmente, não é nada de grave, mas preciso mesmo de falar contigo.
- Está bem, liga-me amanhã depois de jantar e combinamos a hora e o sítio. Tens a certeza de que está tudo bem? – Insistiu.
- Sim, não te preocupes, amanhã falamos, um beijo, dorme bem.
- Um beijo, até amanhã.
Desligou, sentindo um arrepio. O frio que se fazia sentir era cortante.
Fechou a janela, dirigiu-se à estante e pousou o telefone.
Que seria que Teresa lhe tinha para dizer? Assim tão importante? Seria algo importante, senão ter-lhe-ia ligado noutra hora. Ficou intrigado.
À já cerca de dois meses que não sabia nada dela, e agora assim de repente ligara-lhe.
Bom não valia a pena esforçar-se por perceber, além do mais sentia-se também cansado em demasia para o fazer.
Apagou a luz da sala, encaminhou-se para o quarto, onde se despiu e se deitou na cama fria, adormecendo logo de seguida.
Teresa ligou-lhe no dia seguinte, conforme haviam combinado ficaram de se encontrar depois de jantar, em Lisboa, num bar que ambos conheciam. Afonso chegou primeiro, como de costume, Teresa nunca primara pela pontualidade, isso ainda o irritava.
Quarenta minutos e algumas chamadas depois, Teresa chegou.
Trocaram dois beijos como dois amigos desinteressados, não sem antes Afonso a censurar pelos seus constantes e habituais atrasos nos compromissos.
- Vamos entrar? Está muito frio aqui fora – Disse Teresa.
- Vamos! – Disse Afonso- deixando que Teresa passasse para a sua frente.
Sentaram-se a um canto, num sofá longo e vermelho, de tecido aveludado, velho e coçado.
Afonso assim que o empregado chegou, pediu.
- Boa noite. Um Vodka limão e um licor Beirão com Red Bull, olhando para Teresa, que com um olhar cúmplice, lhe indicava num breve aceno com a cabeça que sim, era isso que queria.
- Ainda não te esqueceste do que gosto, observou.
- E também não me esqueci do que tu não gostas. – disse Afonso com um sorriso demasiado sarcástico e cínico.
- Então o que era tão importante que não podia ser dito ao telefone, Teresa?
- Estás curioso e ansioso em demasia! Tem calma, não te preocupes, o que te quero dizer é rápido, mas tinha de to dizer pessoalmente. E outra coisa com a qual não te deves preocupar é que não estou aqui com a intenção de ir para a cama contigo, ok? Eu já tenho uma pessoa com a qual me estou a dar muito bem, portanto não preciso deste tipo de esquemas para irmos para a cama.
Teresa disse-o com clareza, com a firme convicção de que realmente não estava ali como das outras vezes. Depois do seu divórcio, Teresa tinha ido viver para Inglaterra, com um intuito muito forte, o de esquecer Afonso definitivamente.
Não estivera lá mais do que os seis meses de contrato. Ao fim de dois meses já telefonara demasiadas vezes para Afonso, suficientes para  perceber que o amor que ainda sentia por ele era muito grande.
Quando regressou a Portugal, não aguentaram muito sem se voltarem a ver.
Ele por um carinho e uma atracção muito grande, ela por muito mais do que isso. Estiveram diversas vezes juntos, chegaram a pensar em reconciliação e numa nova oportunidade para os dois. Incrivelmente Teresa com menos catorze anos que Afonso tinha amadurecido como mulher, e as suas ideias quanto a uma vida conjunta com alguém eram bem mais adultas do que as de Afonso, que continuava a pensar em viver um dia de cada vez.
Teresa percebera isso, e decidira afastar-se em definitivo de Afonso, era a primeira vez que o contactava em três meses.
- Bom, então vais dizer-me o que se passa ou não?
- Afonso... só existe um forma de dizer isto, eu fiz uma coisa que não devia e da qual me arrependo muito – disse-lhe Teresa com uma lentidão quase exasperante.
Ia continuar quando subitamente chegou o empregado.
- O Vodka?- perguntou.
- É para mim! - Disse Afonso.
- Continua Teresa!
- Calma!- Teresa apontara-lhe a presença do empregado, que permanecia de pé como se estivesse interessado no desfecho daquele relato.
- É tudo obrigado! – Disse Afonso secamente, olhando o empregado com um olhar ameaçador.
- Continuas com a mesma “simpatia” de sempre Afonso.
- Esquece! O que fizeste então?
- Bem, então lá vai... conheces uma pessoa chamada Marta não é?
Subiu-lhe um arrepio pela espinha cima, em simultâneo com uma lividez que se apoderou da sua tez morena.
- Marta foi aquela maluca que me fez a vida negra durante nove meses da minha vida, já o sabias não? Só não te disse como ela se chamava, para além de mais uns quantos pormenores.
- Sim essa mesmo!
- Explica-me como a conheceste? – Disse ainda a recuperar da incredulidade daquele insólito episódio.
Teresa, pausadamente, explicou-lhe que à cerca de dois meses atrás, lhe tinham ligado para casa da mãe, para onde ela tinha voltado depois do divórcio e onde ainda vivia. Nessa noite uma voz de mulher, forte e agressiva, dissera-lhe que era imperioso encontrarem-se as duas, com alguma urgência, pois disso dependia a sua vida.
Teresa, mesmo assustada não tinha resistido à curiosidade quando fora mencionado o nome de Afonso.
Encontraram-se no dia a seguir, Marta levara uma amiga, que Teresa descreveu como mais velha e com um ar desmazelado, mas não conseguindo entrar em mais detalhes, nem do seu nome se conseguia recordar.
Foram até Setúbal, onde se encontraram com a suposta mãe e pai de Marta.
Afonso estava atónito, nunca chegara a conhecer os pais de Marta.
Esta sempre lhe dissera que estavam emigrados nos Estados Unidos e que não tinha contacto com eles à muito tempo, a sua relação era de algum afastamento por razões que embora o tivessem perturbado e mantido nalguma intriga, nunca o tinham forçado a perceber o real  porquê do seu afastamento.
Não sabendo bem porquê, Teresa teria consentido em falar do seu casamento com Afonso.
Não ocultara nada. Dissera-lhes que Afonso se desinteressara subitamente do seu relacionamento, começando a fazer serões continuados, trabalhar aos fins de semana, a fechar-se, não fazendo o mínimo esforço para manter um diálogo e tentar salvar o seu casamento. Isso era verdade.
O que Teresa não contava era que a razão que estaria por detrás disso era... Marta !?!
- Marta? – Como assim? Perguntara Afonso, cada vez mais surpreendido e muito pouco esclarecido com o desfecho do enredo.
- Sim Marta. – Eles disseram-me que a razão do nosso casamento não ter dado certo, era porque a Marta já existia na tua vida, muito antes de nos conhecer-mos.
Isso é a coisa mais incrível que eu já ouvi Teresa, eu só conheci a Marta muito depois de nos ter-mos separado, como é possível???
- Calma que eu ainda não acabei, disse-lhe Teresa com os olhos a brilhar de infelicidade e de arrependimento.
Depois de ouvir isso, essa Marta pediu-me para eu entrar em mais pormenores, sobre o nosso casamento e eu estava tão enraivecida com o que tinha acabado de ouvir que lhes contei uma série de mentiras a teu respeito, que eras mau marido, que usavas muitas vezes de violência verbal comigo, e não só, que muitas vezes chegavas a casa perdido de bêbedo....
Pára!!! – Não quero ouvir mais Teresa!!! Como foste capaz de falar sobre nós a pessoas que tu nem conhecias? Mas mais grave contar mentiras dessas? Eu nunca te maltratei, nem verbalmente, nem de outra forma, nós nunca chegámos a discutir Teresa!!! Como é possível? Beber? Eu? Tu sabes que ainda hoje se bebo é moderadamente, tu nunca me viste bêbedo!!! Eu não acredito que tu fosses capaz de me injuriar e colocares uma capa tão infame sobre mim, que mal é que eu te fiz Teresa?
- Afonso não imaginas como eu fiquei, não imaginas a dor que eu senti no meu peito, o ódio que eu senti por ti nesse dia quando vi a Marta ir ao quarto e aparecer-me de mão dada com a vossa filha. Tu viveste junto com ela, engravidaste-a e deixaste-a ao abandono, antes de nos conhecermos e casarmos - Disse-lhe Teresa chorando compulsivamente. Nesse momento só imperou o silêncio, Afonso olhava em redor, tentando perceber se estava acordado, se realmente não era um pesadelo o que lhe estava acontecer naquele momento.
- Fez um sinal ao empregado, queria mais uma bebida.
- Bom Teresa, acho que agora é que me vou enfrascar, nunca o fiz, mas essa é demais, e vais-me desculpar agora vou-me começar a rir, porque o caso já não é para menos, estou com uma raiva descomunal pelas mentiras que disseste acerca de mim, mas  começo a perceber que caíste numa armadilha tão grande e tão bem montada que o teu eventual sofrimento só me irá fazer rir.
- Ri-te sim vá goza comigo, os pais dela confirmaram que te conheceram e o que me contaram acerca de ti é em tudo igual como tu eras antes de me conheceres. A forma como vestias naquela altura,
o cabelo comprido, teres vivido fora de Lisboa durante um breve período da tua vida, o Citroen branco que tinhas, e que eu conheci de fotografias que me mostraste, tudo batia certo naquele dia Afonso!
Lembraste quando eu te disse que gostava muito que me levasses a Santiago de Compostela? Tu respondeste-me que estavas farto de lá ir, quase todos os anos ias lá. Acabaste por me levar e realmente tudo o que me contavas sobre a cidade era verdade, as pessoas, os monumentos,  a Catedral , as lojas onde vendiam as bruxinhas. Ela mostrou-me uma foto de vocês  dois abraçados, em frente à Catedral, e outra onde estão a almoçar em Vigo.
Afonso não conseguia conter um sorriso sarcástico, Teresa fora real e inocentemente apanhada numa teia montada por Marta. O que o deixava intrigado era não só o motivo de tamanho enredo, como os personagens que se envolviam nesse mesmo enredo, os supostos pais que nunca conhecera, a amiga, a criança... quem seria? Seria ela filha de Marta?
Pensou talvez filha da amiga de que ela se fazia acompanhar. Como poderia existir alguém com tamanha malvadez e sem escrúpulos como Marta capaz de uma proeza tão maléfica. E com que propósito? O de não o deixar ficar em paz com nenhuma mulher? Seria só isso? Ou Marta ainda estaria no princípio de uma enorme, complicada e ignóbil teia, com motivos ainda mais negros por descobrir? Isso já não só o intrigava, como o assustava, e isso fazia com que se apoderasse dele uma raiva que a muito custo continha.
Tentou com alguma dificuldade, fazer entender a Teresa que tudo isso não passava de uma jogada suja de Marta, as fotografias eram verdadeiras, só que tiradas depois do seu divórcio. Quanto aos pormenores que os pais dela lhe confirmaram, eram fáceis de perceber, pois as pessoas que Marta tinha contactado, os casos que ele próprio lhe tinha contado, tudo isso Marta juntara de tal forma que parecia verdadeiro aos olhos de qualquer um.
Teresa secou as lágrimas, meio envergonhada ao acabar de entender que tinha caído numa grande e maléfica cilada e também por ter contado de forma indecente, uma série de mentiras sobre  Afonso.
Não estiveram mais de dez minutos no bar, foi como se soubessem que o seu relacionamento tinha acabado ali. Qualquer hipótese de se voltarem a encontrar só mesmo por mero acaso. Não foi preciso falarem disso, Teresa percebeu-o quando pediu mais uma vez desculpas a Afonso e este mostrando-se algo desinteressado aceitou-as, levantado-se e dirigindo-se à caixa no balcão, onde pagou as três bebidas.
O empregado abriu-lhes a porta, agradecendo e desejando-lhes uma boa noite. Teresa ainda estava no passeio enquanto Afonso já atravessava a rua na direcção do seu carro, olhou por cima do ombro.
- Adeus Teresa – disse-lhe secamente, não disfarçando um pequeno sorriso irónico na despedida. Apressou o passo, não voltou a olhar para trás, a noite sentiu-a ainda mais fria, a roçar o gélido.










terça-feira, 6 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




 

V Capítulo

 

 

(A carta)

“Afonso”
Quando receberes esta carta, eu já estarei fora de Portugal.
Como sabes, a nossa relação estava a deteriorar-se de  dia para  dia. O
nosso amor, do qual não duvido, nem nunca duvidei, já não era suficiente para manter uma relação, minada pela perseguição, receio constante e pela loucura de alguém, que ainda não percebeu que tu já não lhe pertences. Também sabes que os meus negócios não estavam  a correr bem, tinha a empresa completamente falida, nunca to disse, pois sempre achei que mais cedo ou mais tarde as coisas se iriam resolver. Não se resolveram. Vendi a empresa a umas pessoas amigas.
Disseram-me que ainda tem viabilidade, e eles têm muito dinheiro para investir, algo que realmente era necessário e eu não tinha.
A minha casa ficou à venda. A minha irmã vai ficar a tratar de todos os pormenores.
Como vês tudo se conjugava para mais cedo ou mais tarde eu ter de tomar decisões drásticas na minha vida. Ao dia de hoje penso que foram as melhores para mim, espero não me vir a arrepender nunca.
Voltando a nós os dois, lamento que tenha de ser assim. Não teria nunca coragem para te dizer isto cara a cara. É demasiado doloroso, mas fiquei sem alternativas, julgo eu.
Espero que o tempo apague esta dor que inflijo a nós os dois, assim como espero que um dia me perdoes.
Não pretendo voltar a Portugal, já nada me prende aí.
Desejo que encontres a tua felicidade em breve. Eu vou tentar encontrar-me a mim própria.

Beijo grande
Lídia”

Afonso levou mais uma vez o copo de vodka à boca. Era a terceira ou quarta vez que  relia aquela carta.
Sem conseguir manter um tipo de raciocínio lógico, com um nó da mágoa e da bebida forte a apertar-lhe a garganta. O peito, sentia-o a queimar,  numa dor angustiante.
- Mais uma...- escapou-lhe,  sem perceber se em pensamento ou na voz amargurada.
Um ano e meio depois da sua atribulada separação e a sua vida ainda se mantinha naquele espartilho labiríntico, violentamente conduzido por uma mulher que considerava louca, Marta.
Lídia era a última das três mulheres que saíam da sua vida abruptamente no espaço de ano e meio. Todas elas lhe tinham mostrado razões diferentes, mas todas unidas por um traço comum... ele. O objecto obsessivamente cobiçado por uma intransigente louca.
Acendeu um cigarro, levantou-se na direcção da janela da sua sala de estar, enquanto tentava ligar esta última história a todas as outras. Lá fora a noite permanecia fria, mas não tão fria e sombria como ele se estava a sentir. Era inverno, mais um na sua vida.
Quis acreditar nas outras razões, nas que tinham levado num passado bem recente a que estas três mulheres saíssem repentinamente da sua vida.
Existiam outras razões sim, era um facto, mas todas se desvaneciam enquanto só apenas uma se entrelaçava na origem e no final, as atitudes maníaco depressivas daquela louca. Pelo menos no que dizia respeito a estas três mulheres. Talvez Marta se tivesse apercebido que mais cedo ou mais tarde ele viesse a ter uma consolidada e sólida relação com alguma delas e o perdesse definitivamente.
Lembrou-se das palavras de Rogério, o amigo que lhe apresentara Marta.
- Essa gaja não te vai largar tão depressa ! – Dissera-lhe Rogério três meses depois de Afonso ter saído de casa de Marta, num jantar de aniversário da sua amiga Simone. Rogério tinha-o dito de uma forma algo premonitória, como se estivesse ansiosamente à espera daquele desfecho, como se o esperasse desde sempre, e com um sorriso a raiar uma satisfação que lhe parecera algo vingativa.
Essas palavras continuavam a martelar-lhe a cabeça.
Afonso ficara com duas certezas nessa noite. A de que Rogério ficara imensamente satisfeito com a sua separação e a do prazer que lhe dava, saber da obsessão que Marta tinha por Afonso, continuando a mover-lhe  cerradas e continuadas perseguições.
Não o condenou. Nessa altura sabia perfeitamente porque razão Rogério assumia aquela atitude. Afonso tinha ficado com a mulher que Rogério queria para amante.
Rogério era casado, no entanto e também através de uns amigos tinha conhecido Marta e uma amiga. Esta tinha-o enfeitiçado de tal forma que mesmo colocando em perigo o seu casamento, ele não se coibia de bradar aos sete ventos, comentando entre amigos, que tinha conhecido uma mulher espantosa, uma mulher excepcional, que o tinha deixado à beira do desespero.
Afonso, brincara com essa situação, propondo-se inclusivamente a um dia saírem juntos os quatro.
Cláudia, mulher de Rogério era extremamente ciumenta. Teria algumas razões, a principal talvez fosse o seu aspecto pouco cuidado, desmazelado e muito pouco atraente, que levava Rogério a procurar fora do seu seio familiar, mulheres mais bonitas e interessantes. Era uma mulher frívola e cínica, amiga de intrigas e mexericos. De uma forma desesperadamente ridícula, no pequeno círculo de amigos que mantinha com algum custo, sempre por perto, mostrava uma altivez e uma sobranceria digna de uma qualquer dama ou senhora, mas sem nunca conseguir disfarçar a sua falta de humildade e fútil modéstia. O seu baixíssimo nível cultural, bem como a sua inadequada inconveniência, eram motivo de crítica e chacota constante entre os amigos, deixando quase sempre a Rogério um indisfarçável incómodo.
Algum tempo depois Rogério conseguira elaborar um plano para uma saída.
Afonso numa noite, já devida e previamente combinados, faria um telefonema, para casa dele, manifestando intenção no seu auxilio.  O motivo simples, era o de ir buscar um carro da empresa onde Afonso trabalhava, à outra margem, mais propriamente a Setúbal. Estava numa garagem de um edifício que a sua administração mantinha naquela cidade. Chegariam um pouco tarde, Rogério era a pessoa de confiança indicada.
Assim fizeram. Mesmo com a eterna  desconfiança manifestada por Cláudia a atormentá-los, saíram nessa noite. Encontraram-se com Marta e a amiga, ironicamente à porta de uma igreja em Lisboa.
O que Rogério definitivamente não contara, fora com a fulminante e explosiva empatia que se acendera entre Afonso e Marta, nessa noite. Ela não sabia que Rogério era casado. Esse facto tinha-lhe sido maliciosamente omitido por Rogério, bem como as suas verdadeiras intenções.
Marta  acabou por descobri-las nessa mesma noite por Afonso.
Essa fora a última vez que Rogério estaria com Marta.
Voltou a pegar na carta, apagando o cigarro nervosamente, no cinzeiro de pedra mármore.
Lídia sem o ocultar, não tinha conseguido resistir à pressão, assim como Alexandra e como Lara por último. Embora os problemas  financeiros de Lídia se tivessem agravado e avolumado na sua empresa, contribuindo para esta irredutível decisão, o que lhe interessava agora era compreender até que ponto a chantagem psicológica de Marta, tinha sido decisiva.
Lara aguentara cerca de oito meses. Das três, era a que tinha conseguido resistir por mais tempo, com mais estoicismo e coragem. Fizera-o por amor e também por compreensão. Também ela tinha sido vítima de um ex. marido perseguidor e problemático.
Também ele os tinha perseguido implacavelmente. Afonso tinha a certeza que o fizera com a furiosa e preciosa ajuda de Marta.
Acabara por lhes dar descanso no dia em que morrera, vítima da sua própria e crónica insanidade.
A dissimulada perseguição começara desde casa de Lara, até Setúbal. Na serra da Arrábida, numa tarde molhada de Inverno, após várias tentativas de abalroamento do carro de Lara conduzido por Afonso, com um único intuito, o de os precipitar pela ravina. Despistou-se numa curva sinuosa, embatendo numa árvore, tendo morte  imediata.
Depois disso, Lara para desgosto de Afonso, não voltara a ser a mesma.
Uns minutos passados depois desse acidente, Afonso recebera mais uma das incontáveis e absurdas chamadas anónimas. A mesma mulher que lhe começara a ligar na noite em que Marta tentara frustradamente, lançar-se ao rio, na ponte de V. Franca. A mesma voz sensual, como se o conhecesse desde sempre, observara-lhe num insinuante sarcasmo.
- Continuas a conduzir bem Afonso. As curvas da serra da Arrábida são bastante perigosas nesta altura do ano. - Desligando logo em seguida.
Embora Lara lhe falasse num constante e desagradável sem número de chamadas anónimas efectuadas por uma mulher, para o seu telefone, Afonso sempre lhe omitira as chamadas feitas para si, sabendo perfeitamente qual a sua origem.  Essa última não iria ser excepção. O estado de choque em que Lara se encontrava, era um também um adequado e conveniente motivo. 
Por uns tempos estranhamente, não foram incomodados de nenhuma forma. Lara encontrara em Afonso um reconfortante ombro, onde pode descansar daquela dilacerante e dolorosa experiência, sem nunca se aperceber de uma outra perseguição que se manteria em paralelo, até ao dia do aniversário de Afonso.
Lara combinara em segredo com todos os amigos de Afonso que conhecera até aí, bem como os seus, um jantar de comemoração do seu trigésimo sétimo aniversário. Alugara a sala no bar do seu amigo, na praia de Carcavelos. Informara Afonso dessa sua decisão, no próprio dia. Sabia perfeitamente que ele era um pouco avesso a coisas combinadas com muita antecedência
Para Afonso fora uma agradável surpresa. Entrar no bar e ser aprazivelmente presenteado com a presença de quase todos os seus amigos e amigas mais próximos, fora motivo de uma forte e inesquecível emoção. Tudo decorrera na perfeição,  planeado por Lara que se esmerara afincadamente, oferecendo-lhe uma magnífica e inesquecível noite. Estavam radiantes e muito apaixonados, tinham esquecido por completo tudo o que de mau e funesto lhes acontecera nos meses anteriores.
Depois da abertura dos presentes e dos respectivos agradecimentos, do habitual desejo finalizado no tradicional sopro de velas, alusivo aos seus trinta e sete anos, Lara perguntara-lhe o que tinha desejado quando apagara as velas.
- Não desejei nada, apenas agradeci a Deus por me ter colocado um anjo no meu caminho...
Lara visivelmente emocionada, não conseguira conter as lágrimas.
Amo-te muito ! – Disse sentidamente, enquanto se abraçaram e beijaram ternamente durante uns longos e intermináveis minutos.
Todos os amigos presentes, sentiram aquela magia contagiante. Emocionados aplaudiam de pé, pedindo que repetissem aquele momento. Afonso e Lara fizeram-lhes a apetecida vontade entre uma dezena de juras de amor. A sala entre brindes e sinceros sorrisos, irradiava alegria e felicidade. Havia já muito tempo que eles não se sentiam tão felizes e apaixonados.
Afonso levado nessa imensa onda de júbilo, reconhecendo um ligeiro e salutar exagero de álcool, pedira Lara em casamento, enquanto a sala se silenciava subitamente, sem que Lara lhe desse a inevitável resposta de assentimento.
Lara e  Afonso, terminando aquele longo beijo, viraram-se lentamente na direcção do centro da sala, onde uma das empregadas de acentuado sotaque brasileiro permanecia imóvel, numa pose quase tétrica. Na sua mão direita, uma caixa forrada a tecido púrpura, enfeitada por um laço de cor roxeada escura. No outro braço, mantinha um enorme ramo de flores, objecto da soturna e silenciosa observação, responsável por aquela súbita melancolia que invadira a sala e todos os amigos de Afonso.
- Um estafeta deixou na recepção estes presentes para si, Sô Afonso – Balbuciou, com a voz trémula, apercebendo-se de que algo não estava bem, enquanto pousava na mesa à frente de Afonso, a caixa e o ramo de flores. Num ápice reparando no olhar petrificado de Lara e Afonso, abandonou a sala, correndo desenfreadamente, para recepção, sem virar as costas.
- Aquela estúpida ainda me traz esta merda para aqui !?! - Disse visivelmente irritado.
- Ela é brasileira Afonso ! Não faz ideia de que flores se costumam oferecer em Portugal nos aniversários – disse-lhe  Lara, enquanto o reconfortava.
Era lindo sem duvida, o ramo de flores, mas composto essencialmente por jarros e crisântemos vermelhos, apropriado para um serviço fúnebre. Na base do ramo, dobrado, um cartão de cor creme, acompanhava o ramo naturalmente. Afonso pegou-lhe, abriu-o, em letras negras, dactilografadas leu silenciosamente o que estava escrito numa frase curta:
“Que fiques em paz no dia em que as pedras se transformarem em pó”.
Rasgou-o com veemência. Estava  completamente fora de si. Lara nunca o vira assim, com tanto ódio e raiva.  Aquela alegria e extrema felicidade que uns minutos antes os invadira, tinha terminado bruscamente. Em seu lugar uma tristeza fúnebre acolhia-os desprevenidos. Sentia-se dilacerado. Dirigiu-se à recepção, no intuito de saber se a empregada tinha visto algo que lhe desse alguma pista.
No seu curto trajecto tropeçara numa mesa, lançando ao chão um par de copos vazios, que se estatelaram num interminável ruído de destruição. A sua vida de uma forma lenta e dolorosa estava a ser destruída. A violação da sua felicidade, o desassossego que alguém teimava em manter malévolamente, ultrapassara todos os limites. Queria saber quem lhe tinha deixado aquele deplorável presente. Encontrou-a a chorar convulsivamente no ombro de uma colega. Colocou-lhe a mão no ombro amigavelmente, sem coragem para lhe perguntar nada, ou acusá-la do que quer que fosse. Ela não passava de um instrumento, de um inocente braço do mal  daquela mulher diabólica e sem escrúpulos. Foi até à esplanada, sabendo perfeitamente que não encontraria nada nem ninguém, sem esperança tentou encontrar algum vestígio ou indicio, que lhe mostrasse a origem daquele estúpido e vil episódio.  Olhou para o céu, rogou silenciosamente a Deus que colocasse um fim àquela interminável loucura e aquele indesejado sofrimento.
Lara viera ao seu encontro, ainda algo receosa, perguntou.
- Sempre me escondeste algo não foi Afonso? O que se está a passar? Queres falar disso agora?
Afonso agarrando-lhe nas mãos, pediu-lhe desculpa:
- Sabes, eu sempre desconfiei que o teu ex. marido, desde o dia em que nos conhecemos no Guincho, não actuava sozinho. Quando os pneus apareceram esvaziados...eu nunca tive a certeza se foi ele.
- Tu quiseste dizer-me isso, naquele dia em que saíste de casa de manhã cedo, naquele poema que me deixaste. Eu na altura não percebi. Lembras-te que te perguntei nessa tarde o que querias dizer? Disseste-me que era o que sentias naquele momento, que o tempo haveria de lhe dar um sentido. Agora percebo, ela nunca deixou de nos atormentar pois não Afonso?
- Afonso abraçando-a, disse-lhe ternamente.
- Não ! Pelos vistos não, mas juro-te que isso vai acabar.
Lembrou-se da caixa.
Voltaram a entrar no bar, de mão dada. Os seus amigos divididos em pequenos grupos, continuavam em pequenos murmúrios a comentar aquela insólita situação. Passaram pela empregada que lhe tinha trazido o ramo de flores. Afonso suavemente de uma forma quase paternal, levantou-lhe o queixo, que entretanto ela baixara em sinal de vergonha e arrependimento.
- Está tudo bem, não existe motivo para ficar assim. Foi uma festa óptima, obrigado.
- Meus amigos ! E se fossemos beber um copo até Lisboa?!? Bradou, enquanto Lara, com um sorriso tímido de concordância e admiração, lhe perguntava.
- Não queres abrir a caixa? – Disse com inocente curiosidade.
- Eu julgo saber o que a caixa contém – Disse-lhe Afonso com uma convicção fria, deixando Lara a estremecer num súbito e longo arrepio que lhe subia gelado pela espinha.
- Como assim?- perguntou-lhe Lara, surpreendida e algo assustada.
Lara nunca o viera a saber.  Um mês depois separaram-se, após vários desentendimentos e pressões, provocados por inexplicáveis telefonemas e ameaças intermináveis. A sua paixão não aguentara sucessivas perseguições e chantagens psicológicas, como uma doença que se espalha lenta e dolorosamente pelo corpo e pela alma até à morte. Esse amor não resistira e morrera tragicamente. Lara incompreensivelmente tivera uma grande depressão, mudara de casa e em simultâneo terminara a sociedade que mantinha com o seu amigo no stand de automóveis. O seu telefone permanecera para sempre com o número não atribuído. Afonso, que desesperadamente e em vão durante algum tempo a tentara encontrar, perdera a esperança de a voltar a ver. Confortara-se apenas na ideia de que Marta não mais faria sofrer Lara.





segunda-feira, 5 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




IV Capítulo

 

(Dois anos depois...)


Naquela quinta feira, noite do último dia de Dezembro, chovia torrencialmente.
Estava uma daquelas noites medonhas. O céu negro, a espaços de tempo pequenos, rasgava-se em raios luminosos e fulminantes, criando um espectáculo misto de beleza e de respeitável receio, secundados pelo fragor infernal dos  trovões ensurdecedores, numa sobreposição de desordem amotinada.
A estrada secundária sem iluminação, mais parecia um rio na sua interminável corrente. O limpa pára brisas do carro não dava escoamento à  chuva forte e incessante que o céu parecia querer despejar sobre aquele lugar.
Eram quase oito horas da noite, Afonso como sempre e à última da hora, tinha finalmente decidido onde, como e com quem iria fazer a sua entrada no novo  ano. Também como sempre, estava atrasado e começava a demonstrar um ligeiro sinal de arrependimento por essa sua tardia decisão.
Pelas suas contas ainda faltavam cerca de quarenta  minutos, para se juntar aos amigos, pesasse embora o adverso temporal, que se abatia surpreendentemente  por aquelas bandas, obrigando-o a uma condução mais atenta e de redobrado cuidado.
Edite e João, um casal amigo de Afonso, dos tempos de liceu, mas que devido a razões profissionais de João estava já à algum tempo a viver no Algarve, tinham-no encontrado num restaurante em Lisboa umas semanas antes. Fora um reencontro muito agradável, e entre felizes e infinitas recordações, fizeram-lhe um convite, uma espécie de reunião de amigos, de longa data e outros mais recentes, para esse final de ano.
Recentemente tinham adquirido um monte no baixo Alentejo, perto de Santana da Serra, a aldeia onde nascera a mãe de Afonso.
Ele  era um dos últimos convidados. Parecera-lhe uma óptima ideia. Um fim de semana prolongado, fora  da habitual confusão que  Lisboa e as grandes cidades oferecem no final do ano, num aprazível e sossegado lugar, entre velhos amigos. Trocaram números de telefone, combinaram voltar a ligar, para ultimar pormenores, mas Afonso, embora ficasse muito agradado com o convite, deixara a habitual reserva, da sua definitiva decisão só ser tomada perto dessa data.
O convite tinha sido extensivo a Rute, namorada recente de Afonso, que o acompanhava nesse jantar. Também ela, mostrando-se agradecida, tinha adorado a ideia.
A resposta afirmativa fora dada nessa mesma quinta feira, umas horas antes, não sem  Edite ter insistido teimosamente para que não faltasse. Ficaria muito triste se Afonso não fosse. Pediu-lhe que não os decepcionasse, gostaria muito que Afonso os presenteasse com a sua presença nesse fim de semana.
Edite tinha sido namorada de Afonso durante dois anos, logo a seguir a terminarem o liceu. Tinham uma relação muito forte e apaixonada, sustentada numa grande amizade e confiança, valores que Afonso e Edite acreditavam serem dos mais importantes numa relação a dois. Quando do seu reencontro, nesse jantar, perceberam ambos o que perderam. Tinham gostado de saber que mesmo depois dessa relação ter terminado, ainda  mantinham esses valores, pelo menos a amizade, já que no que dizia respeito à confiança, ela tinha sido ignorada e completamente desprezada...por Afonso..
Não a tinha enganado, apenas a trocara por Carla, irmã mais velha de Edite, praticamente no dia a seguir, em que haviam terminado abruptamente e sem explicação, esse relacionamento de dois anos.
Afonso sentira que depois de dois anos de namoro, as decisões  que  a seguir  teria de tomar, lhe trariam inevitavelmente outro tipo de  responsabilidades. A qualquer momento estariam casados. Com dois ou três filhos, completamente ancorado, num belo, majestoso e pacífico porto de abrigo, que Edite lhe ofereceria,  mas ancorado para sempre. Mesmo amando muito Edite, fora egoísta, pensara em demasia talvez, no seu egocentrismo, na sua suposta falta de liberdade, nas muralhas que minuciosamente inventara, e decidira de um dia para o outro terminar a relação que mantinha com Edite.
Esse reencontro com Edite, trouxera-lha à memória um turbilhão misto de agradáveis e angustiantes lembranças, sabia que lhe tinha dado um tremendo desgosto. Sentira até uma ponta de remorso e ciúme. Edite parecia ser feliz com João, e continuava a ser uma bela mulher. Apesar de já ter sido mãe de dois filhos, e de estar à beira de completar trinta e oito anos, mantinha aquela jovial presença que sempre a caracterizara. Reservada mas simultaneamente extrovertida. Aliada à sua inegável beleza mantivera sempre uma postura, que ocasionalmente, mesmo entre amigos e amigas, dava azo a que a criticassem pela sua suposta pose altiva e até arrogante.
A irmã, Carla não chegara a aquecer os lençóis. Menos de dois meses
depois e já Afonso partira noutra curta aventura. Era quase sempre assim. Um longo relacionamento terminado, dava sempre lugar a uma infindável lista de curtas, decepcionantes e algumas perigosas relações.
Tentava lembrar-se por curiosidade, das mulheres que o tinham marcado e feito parte da sua vida, entre Edite e Rute, passando pelo seu casamento de um ano, pelo seu inferno de nove meses com Marta. Recordou-se de Luciana, muito mais velha que ele na altura, a  mais curta da sua vida, numa quente noite de Verão quando tinha apenas dezassete anos,  numa praia de Cascais, que dava pelo curioso e singular nome de... praia de Santa Marta
Intermináveis emoções que lhe chegavam numa agradável retrospectiva. Tinha-as respeitado, achava que sim, Como pessoas, como mulheres, como seres iguais a ele próprio, algumas até com menos vontade do que ele, em terem um relacionamento prolongado. Tinha a certeza que salvo uma ou duas excepções, se eventualmente  o seu caminho algum dia se cruzasse com alguma delas, seria sempre um agradável e amistoso reencontro, reacendendo em alguns casos, uma antiga mas renovada paixão.
Passara das trinta, tentara mentalmente alinhar a sua vida nesses períodos e recordar-se de todas, assim como as situações e peripécias desses tempos. Também as que conhecera antes de Edite, tendo sido subitamente interrompido por Cristina que o acompanhava nessa mesma noite.
A estação de serviço, finalmente! Cristina alertava-o, apontado para os reclamos luminosos que do seu lado direito, à beira da estrada, a menos de cem metros de distância, iluminavam ténuemente  aquela noite infernal. Afonso já tinha reduzido a velocidade uns quilómetros atrás. Sabia que estavam perto dessa bomba de gasolina. Era uma questão de minutos, até chegarem àquele local, fustigado por aquela tremenda tempestade.
Tinha pouca gasolina, tinha-o comentado no início da viagem, com Cristina, que apercebendo-se dos seus momentâneos e ocultos pensamentos o chamara de volta à terra, acordando-o daquela abstracta investigação.
E estava mesmo distraído, tinham sido curtos mas infindáveis minutos que o tinham levado para longe dali, temporal e emocionalmente.
Deserta. Era assim que se encontrava a estação de serviço. Lá dentro apenas um preguiçoso e indolente funcionário, que se levantou vagarosamente e se dirigiu com uma irritante e soturna calma para o carro.
Sem um normal cumprimento de boas noites, num típico e arrastado sotaque do baixo Alentejo, perguntou-lhe quanto iria ser de gasolina, revelando uma indisfarçável vontade de se despachar rapidamente  e voltar para as suas ociosas tarefas.
Afonso compreendeu aquela suposta e inusitada falta de educação. Não fora por mal de certeza. Um homem sozinho, naquele lugar ermo, naquela noite intragável. No lugar dele faria provavelmente o mesmo. Até já se teria ido embora para casa, pensou, ao mesmo tempo que indicava ao homem para que atestasse o depósito.
Cristina e Afonso dirigiram-se para dentro da estação de serviço. Folheando uma revista, desinteressadamente, Cristina pegou numas pequenas embalagens de chocolate, enquanto Afonso se preparava para tirar dois cafés instantâneos.
- Curto? – Perguntou a Cristina. Ainda mal conhecia os seus hábitos. Tinham sido apresentados por amigos comuns, numa das inúmeras ocasiões a que Afonso se juntava para praticar paint ball.
Tinham feito parte da mesma equipa e desenvolvido uma empatia não muito grande mas de cordial entendimento e companheirismo.
Fora exactamente à quinze dias. Cristina, divorciada, pequena empresária, um filho menor, dois anos mais velha que Afonso, simpática, mas longe de fazer o seu género. Fisicamente estava mesmo muito longe, nem sequer a achava muito atraente. Não fora a sua simpatia irradiante, sempre estampada num sorriso aberto e sincero e a sua denotada inteligência, duas características  que achava não serem compatíveis, e não estariam ali os dois. Tinha a noção de que Cristina pensava exactamente o mesmo sobre ele. Estavam os dois sem qualquer compromisso de carácter emocional. Apenas se sentiam atraídos um pelo outro sexualmente, apenas isso, nada mais. Nessa altura tanto a Afonso como a Cristina agradavam-lhes o facto de estarem sozinhos, praticamente e só com essa intenção, o de se satisfazerem sexualmente, temporariamente e sem compromissos, jantarem de vez em quando, beberem um copo e pouco mais.
- São cinquenta e oito euros - Disse o empregado.
- A gasolina, a revista  e os chocolates, querem mais alguma coisa?- disparou secamente, manifestando uma irrefutável vontade de os despachar  rapidamente.
Afonso pagou, ainda disse meio a brincar para o homem fechar e se ir embora depressa, pois com o tempo que estava e a aproximação da hora do final de ano, eles seriam concerteza os últimos clientes.
Desde as cinco horas da tarde, que segundo o empregado, não parava ali ninguém. Dera-se ao trabalho de inclusivamente contar  as cerca de uma dezena de viaturas que por ali passaram, desde essa hora até que começara a dormitar. Entretanto tinha chegado Afonso que praticamente o acordara.
Realmente já não faltaria muito tempo, iria telefonar à filha mais velha, para o ir buscar de carro, pois o tempo lá fora continuava assustadoramente mau e não se aventurava a ir para a aldeia, que distava ainda cerca de dez quilómetros dali, montado na sua pequena e velhinha motorizada.

Ainda comentaram a anormal tempestade, pois Afonso dizendo-lhe que tinha passado ali grande parte da juventude, não se lembrava de um temporal assim. O homem visivelmente distante ainda concordou. Ainda lhe disse que se lembrava das grandes tempestades que antigamente assolavam aquela região, mas habitualmente nos meses de Novembro e Março. Eram dilúvios aterradores e constantes que transformavam  os pequenos e sinuosos barrancos em autênticos mares revoltos de pedras e lama, afogando pastos e sobreiros. Ainda recordaram as trovoadas de Janeiro e Agosto, habitualmente mais perigosas devido ao tempo seco que se fazia sentir no Baixo Alentejo. Ficaram por ali. Um imenso e magnífico clarão de um raio  a descer vertiginosamente pelo céu, seguido de um estrondoso trovão silenciara-os, na voz e no pensamento. Cristina dera um grito e um salto, contagiando Afonso naquele receio. Colocando-lhe mecânica e friamente a mão no ombro, acalmou-a, abraçando-a em seguida, sem sentir qualquer emoção, sem uma única palavra de conforto ou de carinho. 
- Vamos embora Afonso – Disse com a voz vaga, afastando-se na direcção da porta de saída, sem olhar para trás, nitidamente decepcionada e desiludida, com a insensibilidade e quase indiferença naquele abraço de Afonso.
- Vamos! – Respondeu Afonso, pegando no saco das compras.
Com um desejo mútuo de umas boas entradas,  despediram-se. Lá fora um potente par de faróis, varrendo vagarosamente a estrada, a cerca de quinhentos metros da estação de serviço, revelava a aproximação de uma viatura em trânsito por ali, seguindo no sentido inverso ao que Afonso se preparava para retomar.