quinta-feira, 15 de março de 2012

Receios ocultos




Telas de tinta bárbara iluminam um raro esplendor,
A luz fecha-se negra enquanto as almas adormecem,

Ficamos de pé, cai uma lágrima de mulher desejada,
Cruzam-se os braços, desviam-se olhares de pudor,
Cínico, não me separo dos outros que te reconhecem.

Existe um medo que por agora nos prende sem dor,
Desejos ardentes que sobram de uma intensa vontade,
Pintas-me num quadro negro com a mesma nitidez,
As aguarelas sóbrias descobrem-nos na tua verdade,
Os traços são alguns riscos eróticos da nossa nudez.

À luz do dia caem lágrimas de amor transparente,
Esperanças esquecidas e um sonho fragilizado,
Perdemos o horizonte quando baixamos o olhar,
Ocultamos os sentidos, mostrando o receio aparente,
Quadros brancos enlutam a sala que nos deixa ficar.

JMC In Redenção

quarta-feira, 7 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...



VI Capítulo

 

( Enigma)

Sentiu o telefone a vibrar. Tinha-o deixado em cima da pequena estante de mogno que mantinha teimosa e inesteticamente a um dos cantos da sua sala. Olhou para o relógio, passavam 35 minutos da meia noite. Quem seria? Aquela hora? Ainda meio atordoado pela carta de Lídia e pelos pensamentos a que ela o tinham levado, fez tenção de se levantar, indolente e vagarosamente, demorou tanto tempo a chegar ao telemóvel que ele entretanto parou de vibrar.
Recuou, pegou no maço de cigarros,  retirou um e acendeu-o. Pegou no telemóvel e encaminhou-se para a larga janela abrindo-a.
Sentiu um frio lancinante entrar pela sala, era Dezembro e aquela noite avizinhava-se vir a ficar ainda mais fria. Enquanto expirava para fora num longo sopro brando e morno o fumo de uma vigorosa passa, desbloqueou o telemóvel.
A chamada era de Teresa, a sua ex. mulher.
Teresa? O que quereria? Antes de pensar sequer em responder ou mesmo compreender, o telefone voltou a vibrar, Teresa novamente.
Levou um segundo a pensar, atendeu.
Do outro lado.
- Boa noite Afonso, acordei-te?
- Não! Disse laconicamente, boa noite também para ti, está tudo bem contigo?
- Está! E contigo? Estavas acordado?
- Comigo está tudo bem, estava aqui apenas sem sono a fumar um cigarro, mas estava preparar-me para me deitar. Então o que me querias?
- Nada de especial, apenas se querias ir tomar um café comigo amanhã?
- Um café? Amanhã? Só isso?
- Sim. Gostava de falar contigo, era importante para mim.
- É assim tão importante, que precisasses de me ligar a esta hora?- Disse Afonso algo intrigado.
- Não me queres adiantar mais nada e dizer do que se trata?
- Não! Preferia dizer-to pessoalmente, não é nada de grave, mas preciso mesmo de falar contigo.
- Está bem, liga-me amanhã depois de jantar e combinamos a hora e o sítio. Tens a certeza de que está tudo bem? – Insistiu.
- Sim, não te preocupes, amanhã falamos, um beijo, dorme bem.
- Um beijo, até amanhã.
Desligou, sentindo um arrepio. O frio que se fazia sentir era cortante.
Fechou a janela, dirigiu-se à estante e pousou o telefone.
Que seria que Teresa lhe tinha para dizer? Assim tão importante? Seria algo importante, senão ter-lhe-ia ligado noutra hora. Ficou intrigado.
À já cerca de dois meses que não sabia nada dela, e agora assim de repente ligara-lhe.
Bom não valia a pena esforçar-se por perceber, além do mais sentia-se também cansado em demasia para o fazer.
Apagou a luz da sala, encaminhou-se para o quarto, onde se despiu e se deitou na cama fria, adormecendo logo de seguida.
Teresa ligou-lhe no dia seguinte, conforme haviam combinado ficaram de se encontrar depois de jantar, em Lisboa, num bar que ambos conheciam. Afonso chegou primeiro, como de costume, Teresa nunca primara pela pontualidade, isso ainda o irritava.
Quarenta minutos e algumas chamadas depois, Teresa chegou.
Trocaram dois beijos como dois amigos desinteressados, não sem antes Afonso a censurar pelos seus constantes e habituais atrasos nos compromissos.
- Vamos entrar? Está muito frio aqui fora – Disse Teresa.
- Vamos! – Disse Afonso- deixando que Teresa passasse para a sua frente.
Sentaram-se a um canto, num sofá longo e vermelho, de tecido aveludado, velho e coçado.
Afonso assim que o empregado chegou, pediu.
- Boa noite. Um Vodka limão e um licor Beirão com Red Bull, olhando para Teresa, que com um olhar cúmplice, lhe indicava num breve aceno com a cabeça que sim, era isso que queria.
- Ainda não te esqueceste do que gosto, observou.
- E também não me esqueci do que tu não gostas. – disse Afonso com um sorriso demasiado sarcástico e cínico.
- Então o que era tão importante que não podia ser dito ao telefone, Teresa?
- Estás curioso e ansioso em demasia! Tem calma, não te preocupes, o que te quero dizer é rápido, mas tinha de to dizer pessoalmente. E outra coisa com a qual não te deves preocupar é que não estou aqui com a intenção de ir para a cama contigo, ok? Eu já tenho uma pessoa com a qual me estou a dar muito bem, portanto não preciso deste tipo de esquemas para irmos para a cama.
Teresa disse-o com clareza, com a firme convicção de que realmente não estava ali como das outras vezes. Depois do seu divórcio, Teresa tinha ido viver para Inglaterra, com um intuito muito forte, o de esquecer Afonso definitivamente.
Não estivera lá mais do que os seis meses de contrato. Ao fim de dois meses já telefonara demasiadas vezes para Afonso, suficientes para  perceber que o amor que ainda sentia por ele era muito grande.
Quando regressou a Portugal, não aguentaram muito sem se voltarem a ver.
Ele por um carinho e uma atracção muito grande, ela por muito mais do que isso. Estiveram diversas vezes juntos, chegaram a pensar em reconciliação e numa nova oportunidade para os dois. Incrivelmente Teresa com menos catorze anos que Afonso tinha amadurecido como mulher, e as suas ideias quanto a uma vida conjunta com alguém eram bem mais adultas do que as de Afonso, que continuava a pensar em viver um dia de cada vez.
Teresa percebera isso, e decidira afastar-se em definitivo de Afonso, era a primeira vez que o contactava em três meses.
- Bom, então vais dizer-me o que se passa ou não?
- Afonso... só existe um forma de dizer isto, eu fiz uma coisa que não devia e da qual me arrependo muito – disse-lhe Teresa com uma lentidão quase exasperante.
Ia continuar quando subitamente chegou o empregado.
- O Vodka?- perguntou.
- É para mim! - Disse Afonso.
- Continua Teresa!
- Calma!- Teresa apontara-lhe a presença do empregado, que permanecia de pé como se estivesse interessado no desfecho daquele relato.
- É tudo obrigado! – Disse Afonso secamente, olhando o empregado com um olhar ameaçador.
- Continuas com a mesma “simpatia” de sempre Afonso.
- Esquece! O que fizeste então?
- Bem, então lá vai... conheces uma pessoa chamada Marta não é?
Subiu-lhe um arrepio pela espinha cima, em simultâneo com uma lividez que se apoderou da sua tez morena.
- Marta foi aquela maluca que me fez a vida negra durante nove meses da minha vida, já o sabias não? Só não te disse como ela se chamava, para além de mais uns quantos pormenores.
- Sim essa mesmo!
- Explica-me como a conheceste? – Disse ainda a recuperar da incredulidade daquele insólito episódio.
Teresa, pausadamente, explicou-lhe que à cerca de dois meses atrás, lhe tinham ligado para casa da mãe, para onde ela tinha voltado depois do divórcio e onde ainda vivia. Nessa noite uma voz de mulher, forte e agressiva, dissera-lhe que era imperioso encontrarem-se as duas, com alguma urgência, pois disso dependia a sua vida.
Teresa, mesmo assustada não tinha resistido à curiosidade quando fora mencionado o nome de Afonso.
Encontraram-se no dia a seguir, Marta levara uma amiga, que Teresa descreveu como mais velha e com um ar desmazelado, mas não conseguindo entrar em mais detalhes, nem do seu nome se conseguia recordar.
Foram até Setúbal, onde se encontraram com a suposta mãe e pai de Marta.
Afonso estava atónito, nunca chegara a conhecer os pais de Marta.
Esta sempre lhe dissera que estavam emigrados nos Estados Unidos e que não tinha contacto com eles à muito tempo, a sua relação era de algum afastamento por razões que embora o tivessem perturbado e mantido nalguma intriga, nunca o tinham forçado a perceber o real  porquê do seu afastamento.
Não sabendo bem porquê, Teresa teria consentido em falar do seu casamento com Afonso.
Não ocultara nada. Dissera-lhes que Afonso se desinteressara subitamente do seu relacionamento, começando a fazer serões continuados, trabalhar aos fins de semana, a fechar-se, não fazendo o mínimo esforço para manter um diálogo e tentar salvar o seu casamento. Isso era verdade.
O que Teresa não contava era que a razão que estaria por detrás disso era... Marta !?!
- Marta? – Como assim? Perguntara Afonso, cada vez mais surpreendido e muito pouco esclarecido com o desfecho do enredo.
- Sim Marta. – Eles disseram-me que a razão do nosso casamento não ter dado certo, era porque a Marta já existia na tua vida, muito antes de nos conhecer-mos.
Isso é a coisa mais incrível que eu já ouvi Teresa, eu só conheci a Marta muito depois de nos ter-mos separado, como é possível???
- Calma que eu ainda não acabei, disse-lhe Teresa com os olhos a brilhar de infelicidade e de arrependimento.
Depois de ouvir isso, essa Marta pediu-me para eu entrar em mais pormenores, sobre o nosso casamento e eu estava tão enraivecida com o que tinha acabado de ouvir que lhes contei uma série de mentiras a teu respeito, que eras mau marido, que usavas muitas vezes de violência verbal comigo, e não só, que muitas vezes chegavas a casa perdido de bêbedo....
Pára!!! – Não quero ouvir mais Teresa!!! Como foste capaz de falar sobre nós a pessoas que tu nem conhecias? Mas mais grave contar mentiras dessas? Eu nunca te maltratei, nem verbalmente, nem de outra forma, nós nunca chegámos a discutir Teresa!!! Como é possível? Beber? Eu? Tu sabes que ainda hoje se bebo é moderadamente, tu nunca me viste bêbedo!!! Eu não acredito que tu fosses capaz de me injuriar e colocares uma capa tão infame sobre mim, que mal é que eu te fiz Teresa?
- Afonso não imaginas como eu fiquei, não imaginas a dor que eu senti no meu peito, o ódio que eu senti por ti nesse dia quando vi a Marta ir ao quarto e aparecer-me de mão dada com a vossa filha. Tu viveste junto com ela, engravidaste-a e deixaste-a ao abandono, antes de nos conhecermos e casarmos - Disse-lhe Teresa chorando compulsivamente. Nesse momento só imperou o silêncio, Afonso olhava em redor, tentando perceber se estava acordado, se realmente não era um pesadelo o que lhe estava acontecer naquele momento.
- Fez um sinal ao empregado, queria mais uma bebida.
- Bom Teresa, acho que agora é que me vou enfrascar, nunca o fiz, mas essa é demais, e vais-me desculpar agora vou-me começar a rir, porque o caso já não é para menos, estou com uma raiva descomunal pelas mentiras que disseste acerca de mim, mas  começo a perceber que caíste numa armadilha tão grande e tão bem montada que o teu eventual sofrimento só me irá fazer rir.
- Ri-te sim vá goza comigo, os pais dela confirmaram que te conheceram e o que me contaram acerca de ti é em tudo igual como tu eras antes de me conheceres. A forma como vestias naquela altura,
o cabelo comprido, teres vivido fora de Lisboa durante um breve período da tua vida, o Citroen branco que tinhas, e que eu conheci de fotografias que me mostraste, tudo batia certo naquele dia Afonso!
Lembraste quando eu te disse que gostava muito que me levasses a Santiago de Compostela? Tu respondeste-me que estavas farto de lá ir, quase todos os anos ias lá. Acabaste por me levar e realmente tudo o que me contavas sobre a cidade era verdade, as pessoas, os monumentos,  a Catedral , as lojas onde vendiam as bruxinhas. Ela mostrou-me uma foto de vocês  dois abraçados, em frente à Catedral, e outra onde estão a almoçar em Vigo.
Afonso não conseguia conter um sorriso sarcástico, Teresa fora real e inocentemente apanhada numa teia montada por Marta. O que o deixava intrigado era não só o motivo de tamanho enredo, como os personagens que se envolviam nesse mesmo enredo, os supostos pais que nunca conhecera, a amiga, a criança... quem seria? Seria ela filha de Marta?
Pensou talvez filha da amiga de que ela se fazia acompanhar. Como poderia existir alguém com tamanha malvadez e sem escrúpulos como Marta capaz de uma proeza tão maléfica. E com que propósito? O de não o deixar ficar em paz com nenhuma mulher? Seria só isso? Ou Marta ainda estaria no princípio de uma enorme, complicada e ignóbil teia, com motivos ainda mais negros por descobrir? Isso já não só o intrigava, como o assustava, e isso fazia com que se apoderasse dele uma raiva que a muito custo continha.
Tentou com alguma dificuldade, fazer entender a Teresa que tudo isso não passava de uma jogada suja de Marta, as fotografias eram verdadeiras, só que tiradas depois do seu divórcio. Quanto aos pormenores que os pais dela lhe confirmaram, eram fáceis de perceber, pois as pessoas que Marta tinha contactado, os casos que ele próprio lhe tinha contado, tudo isso Marta juntara de tal forma que parecia verdadeiro aos olhos de qualquer um.
Teresa secou as lágrimas, meio envergonhada ao acabar de entender que tinha caído numa grande e maléfica cilada e também por ter contado de forma indecente, uma série de mentiras sobre  Afonso.
Não estiveram mais de dez minutos no bar, foi como se soubessem que o seu relacionamento tinha acabado ali. Qualquer hipótese de se voltarem a encontrar só mesmo por mero acaso. Não foi preciso falarem disso, Teresa percebeu-o quando pediu mais uma vez desculpas a Afonso e este mostrando-se algo desinteressado aceitou-as, levantado-se e dirigindo-se à caixa no balcão, onde pagou as três bebidas.
O empregado abriu-lhes a porta, agradecendo e desejando-lhes uma boa noite. Teresa ainda estava no passeio enquanto Afonso já atravessava a rua na direcção do seu carro, olhou por cima do ombro.
- Adeus Teresa – disse-lhe secamente, não disfarçando um pequeno sorriso irónico na despedida. Apressou o passo, não voltou a olhar para trás, a noite sentiu-a ainda mais fria, a roçar o gélido.










terça-feira, 6 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




 

V Capítulo

 

 

(A carta)

“Afonso”
Quando receberes esta carta, eu já estarei fora de Portugal.
Como sabes, a nossa relação estava a deteriorar-se de  dia para  dia. O
nosso amor, do qual não duvido, nem nunca duvidei, já não era suficiente para manter uma relação, minada pela perseguição, receio constante e pela loucura de alguém, que ainda não percebeu que tu já não lhe pertences. Também sabes que os meus negócios não estavam  a correr bem, tinha a empresa completamente falida, nunca to disse, pois sempre achei que mais cedo ou mais tarde as coisas se iriam resolver. Não se resolveram. Vendi a empresa a umas pessoas amigas.
Disseram-me que ainda tem viabilidade, e eles têm muito dinheiro para investir, algo que realmente era necessário e eu não tinha.
A minha casa ficou à venda. A minha irmã vai ficar a tratar de todos os pormenores.
Como vês tudo se conjugava para mais cedo ou mais tarde eu ter de tomar decisões drásticas na minha vida. Ao dia de hoje penso que foram as melhores para mim, espero não me vir a arrepender nunca.
Voltando a nós os dois, lamento que tenha de ser assim. Não teria nunca coragem para te dizer isto cara a cara. É demasiado doloroso, mas fiquei sem alternativas, julgo eu.
Espero que o tempo apague esta dor que inflijo a nós os dois, assim como espero que um dia me perdoes.
Não pretendo voltar a Portugal, já nada me prende aí.
Desejo que encontres a tua felicidade em breve. Eu vou tentar encontrar-me a mim própria.

Beijo grande
Lídia”

Afonso levou mais uma vez o copo de vodka à boca. Era a terceira ou quarta vez que  relia aquela carta.
Sem conseguir manter um tipo de raciocínio lógico, com um nó da mágoa e da bebida forte a apertar-lhe a garganta. O peito, sentia-o a queimar,  numa dor angustiante.
- Mais uma...- escapou-lhe,  sem perceber se em pensamento ou na voz amargurada.
Um ano e meio depois da sua atribulada separação e a sua vida ainda se mantinha naquele espartilho labiríntico, violentamente conduzido por uma mulher que considerava louca, Marta.
Lídia era a última das três mulheres que saíam da sua vida abruptamente no espaço de ano e meio. Todas elas lhe tinham mostrado razões diferentes, mas todas unidas por um traço comum... ele. O objecto obsessivamente cobiçado por uma intransigente louca.
Acendeu um cigarro, levantou-se na direcção da janela da sua sala de estar, enquanto tentava ligar esta última história a todas as outras. Lá fora a noite permanecia fria, mas não tão fria e sombria como ele se estava a sentir. Era inverno, mais um na sua vida.
Quis acreditar nas outras razões, nas que tinham levado num passado bem recente a que estas três mulheres saíssem repentinamente da sua vida.
Existiam outras razões sim, era um facto, mas todas se desvaneciam enquanto só apenas uma se entrelaçava na origem e no final, as atitudes maníaco depressivas daquela louca. Pelo menos no que dizia respeito a estas três mulheres. Talvez Marta se tivesse apercebido que mais cedo ou mais tarde ele viesse a ter uma consolidada e sólida relação com alguma delas e o perdesse definitivamente.
Lembrou-se das palavras de Rogério, o amigo que lhe apresentara Marta.
- Essa gaja não te vai largar tão depressa ! – Dissera-lhe Rogério três meses depois de Afonso ter saído de casa de Marta, num jantar de aniversário da sua amiga Simone. Rogério tinha-o dito de uma forma algo premonitória, como se estivesse ansiosamente à espera daquele desfecho, como se o esperasse desde sempre, e com um sorriso a raiar uma satisfação que lhe parecera algo vingativa.
Essas palavras continuavam a martelar-lhe a cabeça.
Afonso ficara com duas certezas nessa noite. A de que Rogério ficara imensamente satisfeito com a sua separação e a do prazer que lhe dava, saber da obsessão que Marta tinha por Afonso, continuando a mover-lhe  cerradas e continuadas perseguições.
Não o condenou. Nessa altura sabia perfeitamente porque razão Rogério assumia aquela atitude. Afonso tinha ficado com a mulher que Rogério queria para amante.
Rogério era casado, no entanto e também através de uns amigos tinha conhecido Marta e uma amiga. Esta tinha-o enfeitiçado de tal forma que mesmo colocando em perigo o seu casamento, ele não se coibia de bradar aos sete ventos, comentando entre amigos, que tinha conhecido uma mulher espantosa, uma mulher excepcional, que o tinha deixado à beira do desespero.
Afonso, brincara com essa situação, propondo-se inclusivamente a um dia saírem juntos os quatro.
Cláudia, mulher de Rogério era extremamente ciumenta. Teria algumas razões, a principal talvez fosse o seu aspecto pouco cuidado, desmazelado e muito pouco atraente, que levava Rogério a procurar fora do seu seio familiar, mulheres mais bonitas e interessantes. Era uma mulher frívola e cínica, amiga de intrigas e mexericos. De uma forma desesperadamente ridícula, no pequeno círculo de amigos que mantinha com algum custo, sempre por perto, mostrava uma altivez e uma sobranceria digna de uma qualquer dama ou senhora, mas sem nunca conseguir disfarçar a sua falta de humildade e fútil modéstia. O seu baixíssimo nível cultural, bem como a sua inadequada inconveniência, eram motivo de crítica e chacota constante entre os amigos, deixando quase sempre a Rogério um indisfarçável incómodo.
Algum tempo depois Rogério conseguira elaborar um plano para uma saída.
Afonso numa noite, já devida e previamente combinados, faria um telefonema, para casa dele, manifestando intenção no seu auxilio.  O motivo simples, era o de ir buscar um carro da empresa onde Afonso trabalhava, à outra margem, mais propriamente a Setúbal. Estava numa garagem de um edifício que a sua administração mantinha naquela cidade. Chegariam um pouco tarde, Rogério era a pessoa de confiança indicada.
Assim fizeram. Mesmo com a eterna  desconfiança manifestada por Cláudia a atormentá-los, saíram nessa noite. Encontraram-se com Marta e a amiga, ironicamente à porta de uma igreja em Lisboa.
O que Rogério definitivamente não contara, fora com a fulminante e explosiva empatia que se acendera entre Afonso e Marta, nessa noite. Ela não sabia que Rogério era casado. Esse facto tinha-lhe sido maliciosamente omitido por Rogério, bem como as suas verdadeiras intenções.
Marta  acabou por descobri-las nessa mesma noite por Afonso.
Essa fora a última vez que Rogério estaria com Marta.
Voltou a pegar na carta, apagando o cigarro nervosamente, no cinzeiro de pedra mármore.
Lídia sem o ocultar, não tinha conseguido resistir à pressão, assim como Alexandra e como Lara por último. Embora os problemas  financeiros de Lídia se tivessem agravado e avolumado na sua empresa, contribuindo para esta irredutível decisão, o que lhe interessava agora era compreender até que ponto a chantagem psicológica de Marta, tinha sido decisiva.
Lara aguentara cerca de oito meses. Das três, era a que tinha conseguido resistir por mais tempo, com mais estoicismo e coragem. Fizera-o por amor e também por compreensão. Também ela tinha sido vítima de um ex. marido perseguidor e problemático.
Também ele os tinha perseguido implacavelmente. Afonso tinha a certeza que o fizera com a furiosa e preciosa ajuda de Marta.
Acabara por lhes dar descanso no dia em que morrera, vítima da sua própria e crónica insanidade.
A dissimulada perseguição começara desde casa de Lara, até Setúbal. Na serra da Arrábida, numa tarde molhada de Inverno, após várias tentativas de abalroamento do carro de Lara conduzido por Afonso, com um único intuito, o de os precipitar pela ravina. Despistou-se numa curva sinuosa, embatendo numa árvore, tendo morte  imediata.
Depois disso, Lara para desgosto de Afonso, não voltara a ser a mesma.
Uns minutos passados depois desse acidente, Afonso recebera mais uma das incontáveis e absurdas chamadas anónimas. A mesma mulher que lhe começara a ligar na noite em que Marta tentara frustradamente, lançar-se ao rio, na ponte de V. Franca. A mesma voz sensual, como se o conhecesse desde sempre, observara-lhe num insinuante sarcasmo.
- Continuas a conduzir bem Afonso. As curvas da serra da Arrábida são bastante perigosas nesta altura do ano. - Desligando logo em seguida.
Embora Lara lhe falasse num constante e desagradável sem número de chamadas anónimas efectuadas por uma mulher, para o seu telefone, Afonso sempre lhe omitira as chamadas feitas para si, sabendo perfeitamente qual a sua origem.  Essa última não iria ser excepção. O estado de choque em que Lara se encontrava, era um também um adequado e conveniente motivo. 
Por uns tempos estranhamente, não foram incomodados de nenhuma forma. Lara encontrara em Afonso um reconfortante ombro, onde pode descansar daquela dilacerante e dolorosa experiência, sem nunca se aperceber de uma outra perseguição que se manteria em paralelo, até ao dia do aniversário de Afonso.
Lara combinara em segredo com todos os amigos de Afonso que conhecera até aí, bem como os seus, um jantar de comemoração do seu trigésimo sétimo aniversário. Alugara a sala no bar do seu amigo, na praia de Carcavelos. Informara Afonso dessa sua decisão, no próprio dia. Sabia perfeitamente que ele era um pouco avesso a coisas combinadas com muita antecedência
Para Afonso fora uma agradável surpresa. Entrar no bar e ser aprazivelmente presenteado com a presença de quase todos os seus amigos e amigas mais próximos, fora motivo de uma forte e inesquecível emoção. Tudo decorrera na perfeição,  planeado por Lara que se esmerara afincadamente, oferecendo-lhe uma magnífica e inesquecível noite. Estavam radiantes e muito apaixonados, tinham esquecido por completo tudo o que de mau e funesto lhes acontecera nos meses anteriores.
Depois da abertura dos presentes e dos respectivos agradecimentos, do habitual desejo finalizado no tradicional sopro de velas, alusivo aos seus trinta e sete anos, Lara perguntara-lhe o que tinha desejado quando apagara as velas.
- Não desejei nada, apenas agradeci a Deus por me ter colocado um anjo no meu caminho...
Lara visivelmente emocionada, não conseguira conter as lágrimas.
Amo-te muito ! – Disse sentidamente, enquanto se abraçaram e beijaram ternamente durante uns longos e intermináveis minutos.
Todos os amigos presentes, sentiram aquela magia contagiante. Emocionados aplaudiam de pé, pedindo que repetissem aquele momento. Afonso e Lara fizeram-lhes a apetecida vontade entre uma dezena de juras de amor. A sala entre brindes e sinceros sorrisos, irradiava alegria e felicidade. Havia já muito tempo que eles não se sentiam tão felizes e apaixonados.
Afonso levado nessa imensa onda de júbilo, reconhecendo um ligeiro e salutar exagero de álcool, pedira Lara em casamento, enquanto a sala se silenciava subitamente, sem que Lara lhe desse a inevitável resposta de assentimento.
Lara e  Afonso, terminando aquele longo beijo, viraram-se lentamente na direcção do centro da sala, onde uma das empregadas de acentuado sotaque brasileiro permanecia imóvel, numa pose quase tétrica. Na sua mão direita, uma caixa forrada a tecido púrpura, enfeitada por um laço de cor roxeada escura. No outro braço, mantinha um enorme ramo de flores, objecto da soturna e silenciosa observação, responsável por aquela súbita melancolia que invadira a sala e todos os amigos de Afonso.
- Um estafeta deixou na recepção estes presentes para si, Sô Afonso – Balbuciou, com a voz trémula, apercebendo-se de que algo não estava bem, enquanto pousava na mesa à frente de Afonso, a caixa e o ramo de flores. Num ápice reparando no olhar petrificado de Lara e Afonso, abandonou a sala, correndo desenfreadamente, para recepção, sem virar as costas.
- Aquela estúpida ainda me traz esta merda para aqui !?! - Disse visivelmente irritado.
- Ela é brasileira Afonso ! Não faz ideia de que flores se costumam oferecer em Portugal nos aniversários – disse-lhe  Lara, enquanto o reconfortava.
Era lindo sem duvida, o ramo de flores, mas composto essencialmente por jarros e crisântemos vermelhos, apropriado para um serviço fúnebre. Na base do ramo, dobrado, um cartão de cor creme, acompanhava o ramo naturalmente. Afonso pegou-lhe, abriu-o, em letras negras, dactilografadas leu silenciosamente o que estava escrito numa frase curta:
“Que fiques em paz no dia em que as pedras se transformarem em pó”.
Rasgou-o com veemência. Estava  completamente fora de si. Lara nunca o vira assim, com tanto ódio e raiva.  Aquela alegria e extrema felicidade que uns minutos antes os invadira, tinha terminado bruscamente. Em seu lugar uma tristeza fúnebre acolhia-os desprevenidos. Sentia-se dilacerado. Dirigiu-se à recepção, no intuito de saber se a empregada tinha visto algo que lhe desse alguma pista.
No seu curto trajecto tropeçara numa mesa, lançando ao chão um par de copos vazios, que se estatelaram num interminável ruído de destruição. A sua vida de uma forma lenta e dolorosa estava a ser destruída. A violação da sua felicidade, o desassossego que alguém teimava em manter malévolamente, ultrapassara todos os limites. Queria saber quem lhe tinha deixado aquele deplorável presente. Encontrou-a a chorar convulsivamente no ombro de uma colega. Colocou-lhe a mão no ombro amigavelmente, sem coragem para lhe perguntar nada, ou acusá-la do que quer que fosse. Ela não passava de um instrumento, de um inocente braço do mal  daquela mulher diabólica e sem escrúpulos. Foi até à esplanada, sabendo perfeitamente que não encontraria nada nem ninguém, sem esperança tentou encontrar algum vestígio ou indicio, que lhe mostrasse a origem daquele estúpido e vil episódio.  Olhou para o céu, rogou silenciosamente a Deus que colocasse um fim àquela interminável loucura e aquele indesejado sofrimento.
Lara viera ao seu encontro, ainda algo receosa, perguntou.
- Sempre me escondeste algo não foi Afonso? O que se está a passar? Queres falar disso agora?
Afonso agarrando-lhe nas mãos, pediu-lhe desculpa:
- Sabes, eu sempre desconfiei que o teu ex. marido, desde o dia em que nos conhecemos no Guincho, não actuava sozinho. Quando os pneus apareceram esvaziados...eu nunca tive a certeza se foi ele.
- Tu quiseste dizer-me isso, naquele dia em que saíste de casa de manhã cedo, naquele poema que me deixaste. Eu na altura não percebi. Lembras-te que te perguntei nessa tarde o que querias dizer? Disseste-me que era o que sentias naquele momento, que o tempo haveria de lhe dar um sentido. Agora percebo, ela nunca deixou de nos atormentar pois não Afonso?
- Afonso abraçando-a, disse-lhe ternamente.
- Não ! Pelos vistos não, mas juro-te que isso vai acabar.
Lembrou-se da caixa.
Voltaram a entrar no bar, de mão dada. Os seus amigos divididos em pequenos grupos, continuavam em pequenos murmúrios a comentar aquela insólita situação. Passaram pela empregada que lhe tinha trazido o ramo de flores. Afonso suavemente de uma forma quase paternal, levantou-lhe o queixo, que entretanto ela baixara em sinal de vergonha e arrependimento.
- Está tudo bem, não existe motivo para ficar assim. Foi uma festa óptima, obrigado.
- Meus amigos ! E se fossemos beber um copo até Lisboa?!? Bradou, enquanto Lara, com um sorriso tímido de concordância e admiração, lhe perguntava.
- Não queres abrir a caixa? – Disse com inocente curiosidade.
- Eu julgo saber o que a caixa contém – Disse-lhe Afonso com uma convicção fria, deixando Lara a estremecer num súbito e longo arrepio que lhe subia gelado pela espinha.
- Como assim?- perguntou-lhe Lara, surpreendida e algo assustada.
Lara nunca o viera a saber.  Um mês depois separaram-se, após vários desentendimentos e pressões, provocados por inexplicáveis telefonemas e ameaças intermináveis. A sua paixão não aguentara sucessivas perseguições e chantagens psicológicas, como uma doença que se espalha lenta e dolorosamente pelo corpo e pela alma até à morte. Esse amor não resistira e morrera tragicamente. Lara incompreensivelmente tivera uma grande depressão, mudara de casa e em simultâneo terminara a sociedade que mantinha com o seu amigo no stand de automóveis. O seu telefone permanecera para sempre com o número não atribuído. Afonso, que desesperadamente e em vão durante algum tempo a tentara encontrar, perdera a esperança de a voltar a ver. Confortara-se apenas na ideia de que Marta não mais faria sofrer Lara.





segunda-feira, 5 de março de 2012

Inquietude ou a solidão dos sentidos...




IV Capítulo

 

(Dois anos depois...)


Naquela quinta feira, noite do último dia de Dezembro, chovia torrencialmente.
Estava uma daquelas noites medonhas. O céu negro, a espaços de tempo pequenos, rasgava-se em raios luminosos e fulminantes, criando um espectáculo misto de beleza e de respeitável receio, secundados pelo fragor infernal dos  trovões ensurdecedores, numa sobreposição de desordem amotinada.
A estrada secundária sem iluminação, mais parecia um rio na sua interminável corrente. O limpa pára brisas do carro não dava escoamento à  chuva forte e incessante que o céu parecia querer despejar sobre aquele lugar.
Eram quase oito horas da noite, Afonso como sempre e à última da hora, tinha finalmente decidido onde, como e com quem iria fazer a sua entrada no novo  ano. Também como sempre, estava atrasado e começava a demonstrar um ligeiro sinal de arrependimento por essa sua tardia decisão.
Pelas suas contas ainda faltavam cerca de quarenta  minutos, para se juntar aos amigos, pesasse embora o adverso temporal, que se abatia surpreendentemente  por aquelas bandas, obrigando-o a uma condução mais atenta e de redobrado cuidado.
Edite e João, um casal amigo de Afonso, dos tempos de liceu, mas que devido a razões profissionais de João estava já à algum tempo a viver no Algarve, tinham-no encontrado num restaurante em Lisboa umas semanas antes. Fora um reencontro muito agradável, e entre felizes e infinitas recordações, fizeram-lhe um convite, uma espécie de reunião de amigos, de longa data e outros mais recentes, para esse final de ano.
Recentemente tinham adquirido um monte no baixo Alentejo, perto de Santana da Serra, a aldeia onde nascera a mãe de Afonso.
Ele  era um dos últimos convidados. Parecera-lhe uma óptima ideia. Um fim de semana prolongado, fora  da habitual confusão que  Lisboa e as grandes cidades oferecem no final do ano, num aprazível e sossegado lugar, entre velhos amigos. Trocaram números de telefone, combinaram voltar a ligar, para ultimar pormenores, mas Afonso, embora ficasse muito agradado com o convite, deixara a habitual reserva, da sua definitiva decisão só ser tomada perto dessa data.
O convite tinha sido extensivo a Rute, namorada recente de Afonso, que o acompanhava nesse jantar. Também ela, mostrando-se agradecida, tinha adorado a ideia.
A resposta afirmativa fora dada nessa mesma quinta feira, umas horas antes, não sem  Edite ter insistido teimosamente para que não faltasse. Ficaria muito triste se Afonso não fosse. Pediu-lhe que não os decepcionasse, gostaria muito que Afonso os presenteasse com a sua presença nesse fim de semana.
Edite tinha sido namorada de Afonso durante dois anos, logo a seguir a terminarem o liceu. Tinham uma relação muito forte e apaixonada, sustentada numa grande amizade e confiança, valores que Afonso e Edite acreditavam serem dos mais importantes numa relação a dois. Quando do seu reencontro, nesse jantar, perceberam ambos o que perderam. Tinham gostado de saber que mesmo depois dessa relação ter terminado, ainda  mantinham esses valores, pelo menos a amizade, já que no que dizia respeito à confiança, ela tinha sido ignorada e completamente desprezada...por Afonso..
Não a tinha enganado, apenas a trocara por Carla, irmã mais velha de Edite, praticamente no dia a seguir, em que haviam terminado abruptamente e sem explicação, esse relacionamento de dois anos.
Afonso sentira que depois de dois anos de namoro, as decisões  que  a seguir  teria de tomar, lhe trariam inevitavelmente outro tipo de  responsabilidades. A qualquer momento estariam casados. Com dois ou três filhos, completamente ancorado, num belo, majestoso e pacífico porto de abrigo, que Edite lhe ofereceria,  mas ancorado para sempre. Mesmo amando muito Edite, fora egoísta, pensara em demasia talvez, no seu egocentrismo, na sua suposta falta de liberdade, nas muralhas que minuciosamente inventara, e decidira de um dia para o outro terminar a relação que mantinha com Edite.
Esse reencontro com Edite, trouxera-lha à memória um turbilhão misto de agradáveis e angustiantes lembranças, sabia que lhe tinha dado um tremendo desgosto. Sentira até uma ponta de remorso e ciúme. Edite parecia ser feliz com João, e continuava a ser uma bela mulher. Apesar de já ter sido mãe de dois filhos, e de estar à beira de completar trinta e oito anos, mantinha aquela jovial presença que sempre a caracterizara. Reservada mas simultaneamente extrovertida. Aliada à sua inegável beleza mantivera sempre uma postura, que ocasionalmente, mesmo entre amigos e amigas, dava azo a que a criticassem pela sua suposta pose altiva e até arrogante.
A irmã, Carla não chegara a aquecer os lençóis. Menos de dois meses
depois e já Afonso partira noutra curta aventura. Era quase sempre assim. Um longo relacionamento terminado, dava sempre lugar a uma infindável lista de curtas, decepcionantes e algumas perigosas relações.
Tentava lembrar-se por curiosidade, das mulheres que o tinham marcado e feito parte da sua vida, entre Edite e Rute, passando pelo seu casamento de um ano, pelo seu inferno de nove meses com Marta. Recordou-se de Luciana, muito mais velha que ele na altura, a  mais curta da sua vida, numa quente noite de Verão quando tinha apenas dezassete anos,  numa praia de Cascais, que dava pelo curioso e singular nome de... praia de Santa Marta
Intermináveis emoções que lhe chegavam numa agradável retrospectiva. Tinha-as respeitado, achava que sim, Como pessoas, como mulheres, como seres iguais a ele próprio, algumas até com menos vontade do que ele, em terem um relacionamento prolongado. Tinha a certeza que salvo uma ou duas excepções, se eventualmente  o seu caminho algum dia se cruzasse com alguma delas, seria sempre um agradável e amistoso reencontro, reacendendo em alguns casos, uma antiga mas renovada paixão.
Passara das trinta, tentara mentalmente alinhar a sua vida nesses períodos e recordar-se de todas, assim como as situações e peripécias desses tempos. Também as que conhecera antes de Edite, tendo sido subitamente interrompido por Cristina que o acompanhava nessa mesma noite.
A estação de serviço, finalmente! Cristina alertava-o, apontado para os reclamos luminosos que do seu lado direito, à beira da estrada, a menos de cem metros de distância, iluminavam ténuemente  aquela noite infernal. Afonso já tinha reduzido a velocidade uns quilómetros atrás. Sabia que estavam perto dessa bomba de gasolina. Era uma questão de minutos, até chegarem àquele local, fustigado por aquela tremenda tempestade.
Tinha pouca gasolina, tinha-o comentado no início da viagem, com Cristina, que apercebendo-se dos seus momentâneos e ocultos pensamentos o chamara de volta à terra, acordando-o daquela abstracta investigação.
E estava mesmo distraído, tinham sido curtos mas infindáveis minutos que o tinham levado para longe dali, temporal e emocionalmente.
Deserta. Era assim que se encontrava a estação de serviço. Lá dentro apenas um preguiçoso e indolente funcionário, que se levantou vagarosamente e se dirigiu com uma irritante e soturna calma para o carro.
Sem um normal cumprimento de boas noites, num típico e arrastado sotaque do baixo Alentejo, perguntou-lhe quanto iria ser de gasolina, revelando uma indisfarçável vontade de se despachar rapidamente  e voltar para as suas ociosas tarefas.
Afonso compreendeu aquela suposta e inusitada falta de educação. Não fora por mal de certeza. Um homem sozinho, naquele lugar ermo, naquela noite intragável. No lugar dele faria provavelmente o mesmo. Até já se teria ido embora para casa, pensou, ao mesmo tempo que indicava ao homem para que atestasse o depósito.
Cristina e Afonso dirigiram-se para dentro da estação de serviço. Folheando uma revista, desinteressadamente, Cristina pegou numas pequenas embalagens de chocolate, enquanto Afonso se preparava para tirar dois cafés instantâneos.
- Curto? – Perguntou a Cristina. Ainda mal conhecia os seus hábitos. Tinham sido apresentados por amigos comuns, numa das inúmeras ocasiões a que Afonso se juntava para praticar paint ball.
Tinham feito parte da mesma equipa e desenvolvido uma empatia não muito grande mas de cordial entendimento e companheirismo.
Fora exactamente à quinze dias. Cristina, divorciada, pequena empresária, um filho menor, dois anos mais velha que Afonso, simpática, mas longe de fazer o seu género. Fisicamente estava mesmo muito longe, nem sequer a achava muito atraente. Não fora a sua simpatia irradiante, sempre estampada num sorriso aberto e sincero e a sua denotada inteligência, duas características  que achava não serem compatíveis, e não estariam ali os dois. Tinha a noção de que Cristina pensava exactamente o mesmo sobre ele. Estavam os dois sem qualquer compromisso de carácter emocional. Apenas se sentiam atraídos um pelo outro sexualmente, apenas isso, nada mais. Nessa altura tanto a Afonso como a Cristina agradavam-lhes o facto de estarem sozinhos, praticamente e só com essa intenção, o de se satisfazerem sexualmente, temporariamente e sem compromissos, jantarem de vez em quando, beberem um copo e pouco mais.
- São cinquenta e oito euros - Disse o empregado.
- A gasolina, a revista  e os chocolates, querem mais alguma coisa?- disparou secamente, manifestando uma irrefutável vontade de os despachar  rapidamente.
Afonso pagou, ainda disse meio a brincar para o homem fechar e se ir embora depressa, pois com o tempo que estava e a aproximação da hora do final de ano, eles seriam concerteza os últimos clientes.
Desde as cinco horas da tarde, que segundo o empregado, não parava ali ninguém. Dera-se ao trabalho de inclusivamente contar  as cerca de uma dezena de viaturas que por ali passaram, desde essa hora até que começara a dormitar. Entretanto tinha chegado Afonso que praticamente o acordara.
Realmente já não faltaria muito tempo, iria telefonar à filha mais velha, para o ir buscar de carro, pois o tempo lá fora continuava assustadoramente mau e não se aventurava a ir para a aldeia, que distava ainda cerca de dez quilómetros dali, montado na sua pequena e velhinha motorizada.

Ainda comentaram a anormal tempestade, pois Afonso dizendo-lhe que tinha passado ali grande parte da juventude, não se lembrava de um temporal assim. O homem visivelmente distante ainda concordou. Ainda lhe disse que se lembrava das grandes tempestades que antigamente assolavam aquela região, mas habitualmente nos meses de Novembro e Março. Eram dilúvios aterradores e constantes que transformavam  os pequenos e sinuosos barrancos em autênticos mares revoltos de pedras e lama, afogando pastos e sobreiros. Ainda recordaram as trovoadas de Janeiro e Agosto, habitualmente mais perigosas devido ao tempo seco que se fazia sentir no Baixo Alentejo. Ficaram por ali. Um imenso e magnífico clarão de um raio  a descer vertiginosamente pelo céu, seguido de um estrondoso trovão silenciara-os, na voz e no pensamento. Cristina dera um grito e um salto, contagiando Afonso naquele receio. Colocando-lhe mecânica e friamente a mão no ombro, acalmou-a, abraçando-a em seguida, sem sentir qualquer emoção, sem uma única palavra de conforto ou de carinho. 
- Vamos embora Afonso – Disse com a voz vaga, afastando-se na direcção da porta de saída, sem olhar para trás, nitidamente decepcionada e desiludida, com a insensibilidade e quase indiferença naquele abraço de Afonso.
- Vamos! – Respondeu Afonso, pegando no saco das compras.
Com um desejo mútuo de umas boas entradas,  despediram-se. Lá fora um potente par de faróis, varrendo vagarosamente a estrada, a cerca de quinhentos metros da estação de serviço, revelava a aproximação de uma viatura em trânsito por ali, seguindo no sentido inverso ao que Afonso se preparava para retomar.










Inquietude ou a solidão dos sentidos...




III Capítulo

 

(Alguns meses depois...)



Marginal, final de manhã de um sábado quente mas meio nublado, corria o mês de Julho, Afonso tinha acabado de deixar dois amigos em Alcântara, onde se tinham encontrado para pescar.
Era um daqueles dias em que não lhe apetecia estar parado com uma cana de pesca na mão, naquela monotonia e pasmaceira de esperar que o peixe se lembrasse de picar o anzol e tinha-lhes dito que ia dar uma volta, provavelmente até Cascais, depois se veriam à noite e combinariam qualquer coisa, ir talvez ao bowling, beber um copo, logo se veria.
Rodava na faixa da direita numa condução calma, sem qualquer pressa, estava apenas com vontade de conduzir e apreciar a beleza que a Marginal proporciona, com o propósito de eventualmente se o mar o permitisse, dar um mergulho no Guincho e passar lá um par de horas a apanhar uns percebes, marisco que muito apreciava.
Absorto nestes pensamentos, olhou no espelho retrovisor, atrás de si
um BMW azul escuro rolava a uma incomodativa pouca distância do seu Mercedes, acelerando um pouco mais distanciou-se e manteve essa distância por alguns segundos.
Reparou que era conduzido por uma mulher de fartos caracóis louros. Usava óculos escuros, embora o tempo meio escurecido se mostrasse pouco convidativo ao seu uso. Reparou que se ria muito e falava ao mesmo tempo, estava concerteza a falar com alguém no móvel do carro.
Voltou a encostar-se á traseira do seu carro, e isso voltou a incomodá-lo, passou para a faixa da esquerda ultrapassando de seguida três viaturas, voltando outra vez á faixa da direita, olhou no retrovisor e reparou que o BMW tinha ficado para trás.
O tempo melhorava, á medida que se aproximava de Cascais, o sol já rasgava as poucas nuvens, estava a ficar um dia lindo, talvez ficasse só
mesmo pelos mergulhos e apanhar um pouco de sol. Parando nos semáforos assustou-se com o ruído de uma travagem brusca atrás de si, olhou pelo retrovisor, era o BMW, raios partam a condução de pessoas que se distraem a falar ao telefone, pensou, reparando na distraída condutora que rindo lhe fizera um gesto de atrevida condescendência, ao mesmo tempo que levantava a mão direita num sinal de desculpa e arrependimento, como que dizendo “ia sendo desta mas não foi” retribuiu, sorrindo e abanando a cabeça como que a reprovar o seu tipo de condução e ao mesmo tempo avisando-a que tinha sido por sorte, pura sorte não se ter enfeixado na sua traseira.
Arrancou na abertura dos sinais, não perdendo de vista o BMW que agora o ultrapassava sem pressa, olhou pela janela aberta, ela reparando nesse seu gesto voltou a sorrir, sem olhar para ele, sem desviar o olhar da sua condução. Pensou em segui-la, e quando se preparava para o fazer, ela passou um sinal vermelho, deixando-o um
pouco frustrado, mas com a firme intenção de a seguir. Atravessou a cidade sempre a uma distância considerável, pois as viaturas que iam à sua frente não permitiam que se aproximasse dela, no entanto não a
tinha perdido de vista, e logo que entraram na estrada do Guincho começou a ultrapassar os vários carros que se tinham mantido entre eles, achou curioso ela seguir também na direcção do Cabo Raso, no Guincho. Aproximou-se da sua traseira e manteve-se colado durante uns metros, depois pensou no que estava a fazer, pareceu-lhe um perfeito disparate e decidiu ultrapassá-la olhando para o seu lado direito nesse momento, riu-se mas desta vez não obteve qualquer sinal da parte dela, então acelerou e começou a ver a distância a aumentar, prevendo que iria deixar de a ver, assim aconteceu, pois ela
entretanto também se deixou ultrapassar por outros carros que seguiam nesse sentido e depois de percorrer os quilómetros que faltavam até à praia do Guincho, quase se esqueceu dela.
Intransitável, os cerca de dois quilómetros que faltavam até à praia estavam repletos de carros, não estava com paciência para ficar ali parado, alguns condutores á sua frente começavam a fazer meia volta,
pensou em fazer o mesmo pois o mar que avistava da estrada estava bom para tudo menos para mergulhar. O vento e as ondas altas proporcionavam aos surfistas e aos amantes de Kite Surf um dia em cheio, descompondo um pouco o azul forte do céu e o branco neve deixado pela espuma da forte rebentação, com as suas coloridas pranchas e asas a subir, a planar e descer vertiginosamente ao sabor do vento forte, quase tempestuoso que habitualmente se faz sentir na praia do Guincho.
Assim fez, voltou para trás, seguiu devagar na expectativa de parar a qualquer momento, olhando para o lado direito sempre a avistar o mar, na primeira possibilidade de estacionar pararia, estava com dificuldades em arranjar lugar, pois o lado direito da estrada estava repleto de carros estacionados.
Lembrou-se que junto ao Cabo Raso, habitualmente havia lugar e para lá se dirigiu. Cerca de dois quilómetros à frente virou à direita reparando que aí o mar já era outro, calmo, como se de outro oceano se tratasse.
Entrou na estrada de areão maltratada, esburacada, que dava acesso a uma pequena praia e se mantinha assim desde que tinha memória, e ainda bem , pensou, era uma forma de outros a evitarem e assim estava quase sempre sem ninguém. Andou assim mais uns metros sem pressa, virou na primeira e única curva que dava acesso á arriba de onde se avistavam os velhos viveiros de marisco abandonados e ao mesmo tempo o único acesso á praia.
Não acredito?!? Exclamou, ainda incrédulo e admirado, mas visivelmente curioso. O BMW azul escuro estava aí parado, sem ninguém lá dentro. Parou o carro exactamente onde estava, ao mesmo tempo que lhe passava pela cabeça que se a mulher estivesse por ali a vê-lo pensaria que ele era algum tarado que a seguia. Olhou em redor, nada. Saiu do carro, fechou a porta, aproximou-se da beira na pequena falésia, olhou na direcção do único sítio que achava possível alguém poder estar. Lá em baixo também não avistou ninguém, mas apenas uma toalha de praia de cor amarelo vivo, dobrada em cima de algo que julgou ser um saco ou bolsa de praia. Instintivamente olhou em frente, para o mar revolto,  lá estava ela na boca da minúscula enseada, nadava no sentido da praia, as suas braçadas eram curtas mas vigorosas, denotava que sabia onde estava, o mar ali não era propriamente bom para se nadar, pois mesmo nos dias, poucos, de calmaria, era cheio de correntes atravessadas e traiçoeiras e escondia imensos perigos, só mesmo um bom nadador ou um louco se atreveriam a tomar banho ali.
Esperou que saísse da água, o que fez vagarosamente, como se não tivesse reparado que estava ali alguém a observá-la.
Usava um fato de banho branco, e notava-se pelo seu bronzeado que já levava uns dias de praia. Sem hesitar dirigiu-se á toalha, levantou-a, destapando um saco preto de rede, ao mesmo tempo que se enxugava, olhou para cima na sua direcção. Provocadoramente, olhou-o durante uns momentos como se lhe estivesse a dizer que não se intimidava com a sua presença, embora não fosse bem vindo. Depois tirou do saco aquilo que lhe pareceu ser uma revista, sentou-se na toalha, procurou algo no saco, um maço de cigarros, tirou um que acendeu de seguida ao mesmo tempo que colocava os óculos de sol, ficou assim, virada de costas para ele, com a revista ao seu lado, descontraídamente a fumar e a olhar para a linha do horizonte.
Enquanto a observava, ocorreu-lhe dar meia volta, sair dali e procurar outro sítio, mas a curiosidade em conhece-la crescia, então como lhe era habitual, lembrou-se do velho lema que o acompanhava desde a adolescência, “só perde quem tem” e quem tinha algo realmente a perder? Não era o seu caso, o “não” já era um dado adquirido, portanto iria tentar saber quem era aquela mulher, que se lixasse, se levasse uma resposta negativa, já estaria preparado, e depois pareceu-lhe que na sua breve observação valia a pena arriscar, pois de corpo ela era escultural, de baixa estatura, mas com tudo no sítio.
Como faria? Uma abordagem directa? Simular uma qualquer casualidade? Sentar-se ao lado dela?  Enquanto estes pensamentos lhe invadiam a mente, entrava naquela fase do nervosismo miudinho e ocorreu-lhe que se calhar ela estava ali á espera de alguém, de uma amiga, pior... de um namorado. Alguém que a qualquer momento chegasse ali, e então lembrou-se que provavelmente não seria boa ideia. Nesta fase já ele tinha descido pelo lado esquerdo da falésia, já estava na boca da enseada, embora a uns bons setenta metros do local onde ela se encontrava. Olhou na direcção dela, reparou que o observava também, e nesse momento sentiu um desconforto enorme, ao ponto de não conseguir sequer mais olhar na sua direcção.
Pensou, merda! Está definitivamente à espera de alguém, o que estava ali a fazer? A forma como o olhou, desafiadora, como se não temesse a sua presença, podia querer dizer isso mesmo, ou não?
Estava a ficar irritado consigo próprio, com as suas assumidas hesitações. Simulou dar uns passos adiante, de um salto vigoroso alcançou uma rocha no meio da água turbulenta, sentiu-se observado, assim acontecia, curiosa e disfarçadamente tinha reparado que ela o seguia com o seu olhar.
Ele colocou-se de cócoras, como se estivesse a observar o local mais
minuciosamente, levantou-se e continuou a observar o mar, voltou-se no sentido dela, reparou que continuava a olhar para ele, sem qualquer intenção de o disfarçar, voltou a saltar, agora no sentido inverso, deu uns quantos passos em frente, olhando ora no sentido dela, ora para o chão, baixou-se, apanhou uma pedra de características invulgares, com uns veios de tonalidade azulada e ao mesmo tempo coloridos de cinza, lisa e polida pelo tempo e pelo mar. Tentou fechá-la na mão, mas a sua proporção era maior que a palma da sua mão,   levantou-se, estava agora a pouca distância do sítio onde ela se encontrava, sem mostrar qualquer interesse, folheando a revista, como se procurasse alguma notícia interessante, mostrava-se completamente alheia à sua presença.
Sentiu alguma decepção ao mesmo tempo que experimentava um novo e confortável á vontade, seguiu no sentido dela, pois também era agora o acesso ao seu carro que se encontrava no cimo da falésia.
 - Boa tarde! - Disse, num tom meio arrependido, algo incrédulo e receoso por ter acabado de o fazer.
 - Boa tarde! - Disse ela energicamente, ao mesmo tempo que olhava para ele, sem tirar os óculos escuros, provocadora, num tom quase intimidatório  como se o estivesse a questionar ou mesmo a interrogar, sentiu-se pequeno, aqueles segundos pareceram-lhe intermináveis, à muito que não se sentia tão desconfortável, começava a arrepender-se do gesto, embora não sentisse vontade de desistir.
- Olá, sou o Afonso - Balbuciou, com um  sorriso sincero, em simultâneo retirou os óculos de sol, baixou-se   e estendeu-lhe  a mão
amistosamente, no sentido de a cumprimentar.
- Olá, eu sou a Lara - Disse, olhando-o fixamente, pareceu-lhe, já que ela  não tinha retirado os óculos, e estes eram incrivelmente escuros, não permitindo ver-lhe os olhos, o que o deixou irritado, pois gostava de olhar as pessoas nos olhos, e nem lhe estendera a mão.
Ok está armada em difícil, pensou, ao mesmo tempo que nervosa e rapidamente recolhia a mão, disfarçando aquele impensado gesto com um tímido passar de mão pela barba por fazer, do dia anterior, coçando-a sem sentir qualquer comichão. Colocou no chão, a pedra que tinha apanhado antes, ela desviou o olhar por um segundo, mostrou-se completamente desinteressada.
- Posso-me sentar? – Insistiu.
- Pode, desde que não se sente ao meu colo – Continuando a olhá-lo fixamente, sem retirar os óculos, esboçando um sorriso sincero mas irónico. Como se estivesse a gozar aquele momento, aguardando por mais, estava visivelmente curiosa, notava-se, mas parecia muito segura de si, estava a controlar a situação, deixando para ele as perguntas, respondendo com curtas frases, não lhe dando grande espaço de manobra, ao mesmo tempo que mostrava alguma vontade em ser agradavelmente surpreendida.
- Afonso decidiu ser directo, percebeu que tinha pela frente alguém com muita experiência na vida e nas relações entre pessoas, entendeu que o normal “engate” não iria funcionar, perguntou-lhe se estava ali à espera de alguém.
- Não, respondeu laconicamente - Para que é a pedra? Perguntou.
- Para nada, achei-a apenas invulgar e bonita, e como colecciono pedras invulgares,  apanhei-a – disse.
- Também podia dar-lhe para pior - disse troçando num á vontade que o deixou completamente desconcertado, como se fosse um perfeito disparate um homem andar a apanhar pedras, ela reparando que estava a deixá-lo sem qualquer hipótese de manter um diálogo, rematou dizendo que cada maluco tinha a sua pancada, deixando no ar a ideia que também se podia associar a ele pois também teria uma pancada qualquer, mais uma vez fê-lo com aquele sorriso irónico, de quem estava nitidamente a gozar com ele.
Nisto mudou de posição sentando-se de frente para ele, cruzou as pernas na posição de índio, tirou os óculos devagar sem olhar directamente para ele, abanou a cabeça vigorosamente, passando as suas mãos pelo cabelo encaracolado, ajeitou-o e sem olhar para ele voltou a colocar os óculos escuros, esta teria sido novamente outra pequena decepção, mas Afonso já não pensava nisso, estava apenas envolvido naquele pequeno pormenor, nada demais, pensava apenas em fazer-lhe a pergunta, directamente, sem rodeios.
- Não! Não sou casada, disse-lhe ela, antecipando-se á sua indisfarçável curiosidade, tinha reparado que ao colocar os óculos ele tinha observado a aliança, que trazia no seu dedo.
- Não fique com receio que não estou também à espera do meu marido, continuou, já que Afonso em silêncio, parecia agora dono e senhor da situação, como se a tivesse apanhado numa qualquer mentira, num logro e olhava-a directamente nos olhos, sem os descortinar, mas com ar de quem esperava uma satisfação, e que não estava a acreditar muito nela.
Começava a dar resultado esse seu ar inquisitório, sem saber bem porquê, não se sentia com esse direito, mas mantinha-se firme, o “jogo” tinha virado.
Ela retirou finalmente os óculos escuros, aproximou-se um pouco mais, olhou-o fixamente, ao mesmo tempo que estendia as suas mãos, na sua direcção, retirou a aliança, facilmente, mostrando-lhe o dedo nu, disse-lhe que reparasse no dedo, que visse a não existência de qualquer marca demonstrativa de um uso constante.
Disse-o com um ar visivelmente irritado, demostrando-lhe que não gostava de pessoas intrometidas, que aliás o uso ocasional da referida aliança era precisamente esse, o de muitas vezes afastar palermas intrometidos, homens fúteis, para os quais já não tinha paciência, pois eram todos iguais, só a procuravam com um intuito... sexo.
Os seus olhos eram castanhos, mas a raiva que soltava na resposta davam-lhe um ar de extrema acutilância, aproximando-os de um negro brilhante, de fera assanhada.
Afonso riu-se, em simultâneo puxou de um cigarro, oferecendo-lhe um também, ela recusou dizendo que gostava mais dos da marca dela, perguntando-lhe de seguida se ele era casado, ou se também era daqueles que escondia a aliança quando conhecia alguém ocasionalmente, dando-lhe de seguida alguns exemplos de casos que já teriam acontecido com ela. Afonso acendeu o cigarro, deu duas passas, apoiou-se no braço esquerdo e perguntou-lhe.
- E se for?- estou a faltar-lhe ao respeito? Estou a fazer algo que coloque em causa a minha seriedade com a minha eventual mulher?
- Então é casado!?! E o que espera de mim? Porque razão se meteu comigo? O que pretende? Não sente um arrependimento? Faz isto muitas vezes? Perguntou-lhe ela metralhando-o sem lhe dar hipótese de resposta.
Afonso voltou a sorrir, ao mesmo tempo que puxava da carteira, de onde retirou o Bilhete de Identidade, estendo-lho, disse-lhe calmamente.
- Não. Lara, sou divorciado e desajuntado.
Lara olhou para o B.I., meio envergonhada, leu que era verdade, mas sem deixar cair a guarda, ainda ripostou, que podia ser verdade mas se calhar tinha namorada,  e não se coibia de estar ali a “arrastar” a asa, e assaltou-lhe a pergunta. Desajuntado? Que raio queria isso dizer?
- Isso mesmo.- Disse-lhe Afonso.
Explicou-lhe então que tinha vivido maritalmente com Marta, cerca de nove meses e meio, que tinha sido uma relação difícil, que a separação tinha sido muito mais complicada que o seu divórcio. Ela já mais calma, parecia interessada em saber mais pormenores, mesmo os que percebia terem sido os mais sórdidos, mas Afonso estava neste momento muito mais interessado em conhecer Lara, mais do que voltar a falar num assunto que nada lhe  agradava, que lhe trazia ainda muitas mágoas. Lara percebeu e de seguida contou-lhe que estava divorciada á cerca de 8 meses, que tinha mesmo depois disso a percepção que o ex. marido a seguia constantemente. Percepção ou certeza? Afonso estava intrigado.
Lara disse-lhe aquilo que lhe pareceu ser a verdade, honestamente pensou que afinal a raiva que  Lara tinha demonstrado anteriormente resultava disso mesmo, perseguição... e não só, chantagem psicológica, violência verbal e  mesmo física e o que nunca pensara vir a ouvir, Lara contou-lhe que ele a tinha perseguido e violentado após o divórcio.
Afonso não querendo acreditar, perguntou-lhe porque não tinha feito queixa dele á polícia, se os amigos e familiares sabiam o que se tinha passado, disse-lhe mesmo que achava estranho, quando ela falara disso, pois parecia ter um ar de resignação, como se não fosse assim tão grave. Lara disse-lhe que não contara a ninguém senão a uma amiga de infância e a um grande amigo, que via como a um irmão, mas na única condição de nada contarem.
Afonso fez-lhe a pergunta inevitável, porque lhe contara a ele, um perfeito desconhecido, alguém que poderia mesmo tê-la seguido e pudesse estar a mando do ex. marido, porquê ele?
Lara demonstrava uma frieza incrível, embora parecesse um animal selvagem ferido. A emoção mais forte era a da inegável vontade de se vingar, deu-lhe a entender que sobre o assunto da violação e da eventual vingança teria de ficar por ali, não lhe iria dizer mais nada...por enquanto, era por isso o seu ar resignado. Em relação a ter tido esta conversa com ele, disse-lhe simplesmente que Afonso lhe inspirava alguma confiança, podia não estar a falar com a pessoa certa, mas também gostava de saber a opinião de alguém que não a conhecesse, sentia alguma vontade em desabafar com alguém.
- E voçê não deve estar a mando de ninguém, pois quem estava atrás de si na Marginal era eu, certo?
- Pois tem razão, já me tinha esquecido que me ia abalroando. E vejo que tem boa memória, recorda-se então que era eu que estava à sua frente?
- Porquê? Você para estar aqui, é porque reparou no carro que está lá em cima não?
- Sim, tem razão, acredita no destino? - Perguntou Afonso.
- Acredito que as coisas não acontecem sempre por mero acaso.
Afonso, perguntou-lhe ainda se tinham ficado filhos dessa relação, ela com algum desagrado e incómodo disse-lhe que precisamente por não terem filhos é que ele a perseguia e a tinha violado no sentido de a engravidar, pois sabia que se isso acontecesse ela não iria abortar, era contra os seus princípios.
Afonso estava ficar com um nó na garganta, aquela mulher, e tudo o levava a crer que estava a falar verdade, era uma vítima disfarçada naquela capa de mulher sem medo, tinha sofrido enquanto casada, torturas impensáveis e nem o seu divórcio a tinha deixado descansada. Vivia num constante terror, mas acomodada nesse seu sofrimento, silenciosa. Pensou que afinal o que se tinha passado na sua relação anterior, mesmo com as perseguições que Marta ainda lhe fazia era em tudo incomparavelmente menor com o que lhe tinha descrito Lara.
Ela contara-lhe isto tudo a ele, um perfeito desconhecido, sem qualquer desconfiança, num misto de raiva, vingança, e ódio.
Ele sem conhecer o ex. marido de Lara, já sentia uma raiva enorme, já o via como alguém que odiava também.
Estiveram cerca de duas horas a conversar, foram falando de tudo e embora Lara lhe tivesse manifestado vontade de não falar mais sobre aquele assunto ia acabando por lhe contar a sua aterrorizante e recente vivência.
Lara era uma mulher nova, tinha trinta e quatro anos, dois dos quais casada, tal como Afonso, tinha casado tarde, não se queria prender antes dos trinta, era vendedora de  automóveis no Estoril, era daí que tinha conhecido o seu ex. marido, mostrou-lhe um cartão de uma antiga empresa que tinham tido os dois, e um actual onde trabalhava agora, era um stand de um amigo, que lhe tinha dado uma pequena sociedade, uma percentagem pequena, de incentivo, ela contou-lhe que até isso o ex. marido lhe tentara roubar, e as lágrimas, que até aí estiveram ausentes, apareceram a afogar-lhe o olhar, a toldar-lhe a voz, Afonso teve compaixão dela e num gesto de amizade, com o polegar, tentou limpar-lhe o rosto, ela não esboçou nenhuma desaprovação, como se sentisse sinceridade nele e até algum desejo que o fizesse. Aproximando-se mais, Afonso deu-lhe um beijo na face ao mesmo tempo que com a outra mão a acarinhava, fazendo-lhe uma pequena festa em volta dos olhos húmidos. Em simultâneo sentiu os braços fortes dela em volta do seu corpo, sussurrando-lhe ao ouvido enquanto o apertava num imenso abraço, um eterno obrigado.
Ficaram assim, abraçados durante um bom par de minutos, e tanto Lara como Afonso, perceberam que estavam perigosamente próximos. Lara soltando os braços que envolviam Afonso, foi agradecendo o carinho, em simultâneo tirou um maço de lenços de papel  do saco de rede, enxugou os olhos humedecidos e assuou-se.
Afonso com um sorriso, disse-lhe:
- Que achas de eu te convidar para beber uma cerveja? Posso tratar-te por tu não? Está a ficar um pouco desagradável e sempre podíamos ir
até uma esplanada, o que me dizes?
- Óptima ideia, nem demos por este vento levantar e está realmente a ficar frio, claro que nos podemos tratar por tu. Olha tenho um amigo que tem um bar na praia de Carcavelos, e faz uns caracóis espectaculares, gostas de caracóis?
- Se gosto? Sou doido por caracóis, vamos embora já!
Lara levantou-se, arrumou apressadamente as suas coisas dentro do saco, vestiu a saia de ganga e a blusa de linho amarela por cima do fato de banho, Enquanto Afonso a observava, calçou os chinelos e perguntou-lhe se costumava ir muitas vezes para ali, dizendo-lhe que esta era a terceira ou a quarta vez que se tinha ali deslocado.
- Costumo vir aqui algumas vezes, mas praticamente só para pescar, não me recordo de te ter visto por aqui nenhuma vez.
- Pois andámos desencontrados. - Disse-lhe Lara.
Afonso pegou-lhe no saco, dirigindo-se à base da falésia esperou por Lara, estendeu-lhe a mão e ajudou-a a subir as rochas íngremes.
Já no cimo, Afonso ofegante deixou escapar uma frase.
- Bolas estou a ficar velho, isto cansa.
- Não és só tu, eu também estou de rastos, se me tapassem agora a boca ficava-me já por aqui. – Disse Lara, nitidamente ainda mais cansada.
Afonso perguntou-lhe se ela iria consigo ou vice versa.
- Não. Eu vou à frente e depois dali vou para casa.
- Sim é melhor. Não só por isso mas porque tu também és um pouco perigosa a conduzir e ainda te enfeixas na minha traseira- Disse-lhe Afonso com ar de gozo.
- Que gracinha, vê lá se te cai um dentinho com a piada, Oh ! – Exclamou Lara ao mesmo tempo que apontava para o seu carro. – Eu não acredito!?! Que merda era o que me faltava. Porra!
Olha – disse-lhe Afonso - E não é só o pneu da frente, se reparares o de trás está da mesma maneira.
Incrédulos olhavam para ambos os pneus do BMW de Lara. Os dois em baixo, inacreditável. Trocaram um olhar de admiração e também de acordo, alguém tinha ali estado, olharam em redor mas quem eventualmente o fez, já não estaria ali concerteza.
Ambos concordaram que não deram conta enquanto lá estiveram por debaixo da falésia, de nenhum carro a aproximar-se, mas também era difícil, com a conversa, distraídos, o barulho do mar, e alguém que o fizesse não precisava de se aproximar de carro, podia perfeitamente tê-lo feito a pé.
- Queres apostar que foi o cabrão do meu ex. filho da mãe, só podia ser ele ou alguém a mando dele – Soltou Lara.
- Calma, não podes dizer isso, sabes lá se foi ele, sabes que andam aí uns gajos agora que fazem isto, depois os donos ausentam-se para ir buscar pneus ou ajuda e quando chegam têm lá o lugar.  Habitualmente um carro desta gama vai de reboque e perde-se o paradeiro para sempre. Vá ! – disse-lhe Afonso, não tenhas a mania da perseguição.
- Pois acredito, é nisso e no Pai Natal, aposto contigo que foi ele ou alguém das relações de merda que ele tem.
- Bom não aposto, o que sei é que ainda quero ir comer os caracóis e portanto temos de arranjar uma solução para sair daqui - Respondeu-lhe Afonso ao mesmo tempo que se baixava para verificar os pneus.
Os pneus não pareciam estar furados, talvez estivessem apenas sem ar. Afonso transmitiu-lhe isso, acalmando-a, dizendo-lhe também que se assim fosse estavam com sorte, tinha uma bomba de  encher o seu barco de borracha dentro do carro, demoraria um pouco mas se não estivessem furados sairiam dali rapidamente.
Abriu a mala do seu carro, retirou a bomba e começou a encher o pneu da frente, parou um pouco para verificar se deixava sair algum ar, não saiu e então recomeçou, até ficar com o aspecto dos outros.
Repetiu a operação no pneu de trás, retirou e arrumou a bomba novamente no seu carro. Neste espaço de tempo estiveram os dois sempre em silêncio, no entanto Afonso não tinha deixado de pensar nas vezes que Marta ou alguém em que ela mandaria o tinham deixado nesta situação, com um ou dois pneus em baixo, depois da sua separação. Quem sabe se não teria sido ela? Ainda ? Ao fim deste tempo todo? Bom não queria ainda dizer a Lara tudo sobre a sua relação inacabada com Marta, era melhor por agora deixar Lara pensar que tinha sido o ex. marido e não falar mais nisso.
- Vês?!? – Foi rápido, vamos embora? Daqui a vinte minutos estamos em Carcavelos, de volta daqueles caracóis, espero que sejam mesmo bons, que eu sou muito esquisito. Estou com uma sede, agora caía mesmo bem uma imperial, embora? Lara concordou e agradeceu-lhe com um sorriso, entrou no seu carro, pô-lo a trabalhar e arrancou devagar, Afonso seguiu-a, entraram na estrada do Guincho na direcção da Boca do Inferno, atravessaram o interior de Cascais, vagarosamente, o  trânsito estava um caos, filas de carros intermináveis, aquela hora era complicada, ainda para mais o tempo tinha estado convidativo, e depois Cascais era um centro turístico, nesta altura do ano, o Verão convidava residentes, turistas de ocasião, imensa gente de nacionalidade diversa a visitar as suas solarengas praias, as suas imensas esplanadas.
Ainda a pensar no sucedido, Afonso dizia para si, que raio, que dia, tinha conhecido Lara, uma mulher, não muito bonita é verdade, mas muito atraente, inteligente, uma mulher que lhe parecia ser sincera, tinham-se conhecido daquela forma, invulgar, tiveram uma agradável conversa, embora para falar dos seus sofrimentos e infelicidades, e depois para rematar, a história dos pneus, bom agora queria mesmo era caracóis, imperiais e conhecê-la melhor.
Quinze minutos depois estavam a entrar num dos  parques de estacionamento da praia de Carcavelos, arrumaram facilmente os carros apesar de aquela hora a praia estar como de costume, repleta de gente, eram sete horas da tarde, mas o sol ainda estava preguiçoso.
Desceram umas escadas de acesso á praia, andaram cerca de trinta metros, por entre as esplanadas.
- Já viste? Hoje nada nos corre bem- disse Lara, apontando para a porta do bar do amigo.
Na porta de vidro, um papel com uma cruz negra, um obituário indicando o fecho por motivos fúnebres.
- Bom mas devem existir aí outros bares onde haja caracóis não? além disso estou com sede.
- Afonso, sabes que mais? Com tudo isto, e não me sai da cabeça a história dos pneus, sei lá até estou com receio de ligar para o meu amigo e perguntar-lhe o que se passou, quem terá morrido? Já não me apetece nada, acho que vou para casa tomar um bom banho de imersão, deitar-me sem jantar, sei lá, não te importas pois não?
Afonso disse-lhe que compreendia e não se importava, concordou algo decepcionado mas não estava com vontade de a contrariar, pediu-lhe apenas que o acompanhasse numa imperial, depois sairiam dali, cada um para sua casa.
Assim fizeram ao balcão de outra esplanada, não se sentaram. Afonso tirando o cartão que ela lhe tinha dado, perguntou-lhe se não se importava que ele lhe ligasse á noite, ou se queria ficar com o seu número de telefone.
Ela disse-lhe que lhe ligasse, mas que não criasse muitas expectativas, não estava com muita vontade, nem de falar, muito menos de sair, quanto ao número de telefone quando ele lhe ligasse ficaria a saber., qual era o seu número.
Beberam rapidamente, pagaram e voltaram para os carros, despediram-se amistosamente com dois beijos na face e uma carícia mútua, ela sem olhar para trás entrou no seu carro e afastou-se dali, enquanto Afonso falava sozinho.
- Vou-te ligar ! Gostei muito de ti, vou querer voltar a estar contigo.
Saiu dali, mas sem pressa, abrindo os vidros do carro, levantou o volume do leitor de CDs. acendeu um cigarro, e nesse instante lembrou-se:
Que merda! Esqueci-me da pedra! Oh que caraças, Era bonita para a minha colecção. Bom, no domingo se estivesse bom tempo voltaria ali talvez, sabia perfeitamente onde a tinha deixado. Mas também era só uma simples pedra, se lhe apetecesse tudo bem, se não, o que não faltavam eram pedras.


















Falta-me o inconstante olhar no futuro,
Onde me canso, gasto e envelheço,
Falta-me ir de encontro ao que não procuro,
Onde me falta o princípio do meu fim,
Onde me recolho na falta, em vez de um começo.

Sinto um soberbo desvendar do meu segredo,
Encantado numa volátil brisa tardia,
Fico miserável ao me ocultar no medo,
Sou destroço, pouco mais que nada,
Esperando a chegada da sôfrega melancolia.

Talvez cedo de mais para eu por aqui ficar,
E talvez tarde de mais para eu só, partir,
Acolho-me na hora incerta para me tentar,
Num suicídio que ainda me espreita,
Que me deseja neste meu breve sentir.

Suspiro na falta da tua e da minha vontade,
Assim como me falta o teu ventre vazio,
Espero que nunca sofras na minha saudade,
Nem recordes aquele que eu não sou,
Lembrando somente quem nunca partiu.

Reconheço-te na dor de nós separados,
Como reconheço a sombra que nos persegue,
Julgarei quem nos fez injustos condenados,
Sendo mártir de uma última coragem,
Abrindo um mar onde o nosso amor navegue.

Afonso







Embora sem conseguir prestar muita atenção, tentava compreender o porquê daquele poema, deixado por Afonso naquela manhã em cima da pequena mesa de centro, na ampla e sumptuosa sala.
Lara ainda meio ensonada, dirigiu-se à janela da sua varanda, abriu os estores, olhou para o céu azul e límpido onde o sol soberbo reinava à um bom par de horas. Bocejando, esfregou os olhos, ainda mal habituados à claridade que irrompia agora pela sala meio desarrumada.
Sentou-se no amplo sofá creme, cruzou as pernas. Por um breve momento colocou a folha ao seu lado, olhou em redor. Sorriu, os seus sapatos de salto alto permaneciam espalhados pelo chão da sala. No sofá pequeno ao canto e no chão continuavam as suas roupas amarrotadas. Relembraram-lhe a noite anterior.
Tinha sido ali que ela e Afonso tinham feito amor pela primeira vez. Passaram-lhe pela mente, em acelerada retrospectiva todos os momentos tórridos que tinham feito sentir um ao outro.
Afonso tinha-lhe telefonado nessa mesma noite. Lara apesar de não estar com muita vontade acabara por aceder a sair com Afonso devido à sua enorme persistência.
Tinham apenas passeado na pequena praia da Torre, bebido um café, conversando mais um pouco, nada de mais.
Quando a trouxera a sua casa, Lara perguntara-lhe se não queria subir, com o pretexto de beberem alguma coisa e conhecer a sua casa.
Esse era apenas um pretexto, pois tanto Lara, como Afonso sentiam-se imensamente atraídos um pelo outro. Já na praia, naquela tarde o tinham sentido. Como esperava, Afonso tinha dito que sim, não sem antes ter evidenciado uma pequena hesitação, talvez admirado com a franqueza de Lara, talvez por ter partido de Lara, essa iniciativa.
Não se sentia incomodada por ter conhecido alguém numa tarde e com essa mesma pessoa ter tido sexo na mesma noite. Embora esse tipo de atitude não fizesse parte dos seus hábitos, Lara desta vez estava à imenso tempo sozinha. Afonso pelo que lhe tinha contado também. Seria verdade? Teria tido alguém à pouco tempo? Ainda estaria com alguém? Deixou de sorrir, pegando na folha de papel com o poema, preparando-se para o ler. Pressentiu que eventualmente estaria ali a resposta a todas essas questões que a assaltavam. Já começara a despertar daquela madorna. E o que estaria a sentir Afonso? Teria gostado tanto quanto ela?
Voltou a ler. Continuava não só a não perceber o porquê, bem como o próprio poema. Não era das coisas que mais apreciava, aliás até achava um pouco enfadonho, ler livros, romances, quanto mais poesia. Afonso seria assim? Enfadonho? Tinha percebido que Afonso não era uma pessoa superficial ou fútil e isso agradava-lhe. Imaginou-o um pouco romântico, nessa noite ele tinha-lhe oferecido uma rosa vermelha, a qual permanecia em cima do aparador, no hall de entrada.
Talvez até nem lhe tivesse dado a importância devida, mas a fogosidade que Afonso tinha manifestado ao entrar em sua casa não permitiu que a colocasse numa jarra com água.
Pensou... qual a mulher que não gostaria de ter um homem romântico ao seu lado? Sinceramente... Lara era uma mulher demasiado prática, a sua profissão, a sua maneira de viver também não a deixavam ser de outra forma, mas fazia o que gostava, muitíssimo. É claro que dava importância aos preliminares, mas não tanta assim. Gostava de sentir atenção, carinho e adorava todos os jogos de sedução. Afonso tinha acabado de entrar pela sua vida dentro, assim, como um furacão, prático e incisivo...mas romântico.
Deixou de ler, colocou a folha novamente sobre a mesa. Não estava com paciência. A hora da manhã também não era a mais propícia, muito menos para leituras daquele género. Perguntar-lhe-ia mais tarde, pessoalmente. Ficaram de almoçar nesse dia. Lara ligar-lhe-ia para ele a ir buscar assim que estivesse despachada.
Levantou-se indolente, espreguiçou-se, foi até ao quarto, pelo caminho ainda tropeçou nos seus próprios passos, meio trôpega. Foi ajeitando o farto e louro cabelo encaracolado. Parou diante do espelho sobreposto ao aparador.
Os seus olhos desceram na direcção da rosa. Tocou-a levemente, sem a mover, enquanto se encaminhou novamente para o seu quarto. Apesar de tudo ainda tinha algumas horas naquela manhã de domingo. Despiu o robe de cetim rosa transparente e deitou-se novamente, sem qualquer intenção de dormir, apenas a de ficar assim, num prolongado relaxamento em cima da sua cama desfeita.
Um perfume suave e agridoce, com uma ligeira fragrância a madeira, ainda invadia teimosamente o seu quarto, que se mantinha numa preguiçosa penumbra. O longo cortinado de cor rubi, ocultava por completo a janela entre aberta. Gostava daquele cheiro. Deixou cair a cabeça levemente para o lado esquerdo da cama. Era ali que o odor nascia, um suave odor que lhe deixou uma agradável permissão em se excitar. Cheirava a homem...
Não conseguiu resistir. Acariciou as pernas com as suas mãos suavemente, foi subindo lentamente, enquanto fechava os olhos imaginando que Afonso estivesse ali. Uma das mãos ficou, a outra subiu, percorrendo o que restava do seu corpo até aos desnudados seios, acariciando-os, com algum vigor, como querendo-os despertar. Não ficou aí muito tempo. Começou a lamber e a morder o indicador, enquanto a sua outra mão se mantinha apertada entre as suas pernas, escondendo um dedo laborioso.
Sentia o calor a subir pelo seu corpo, abriu as pernas devagar como se estivesse preparada para ser penetrada, assim fez, colocando dois dedos no interior da humedecida vagina. Num vai vem lento, de prazer, levantou os joelhos alternadamente. Depois fê-lo mais frenética e energicamente, enquanto da sua boca saíam lânguidos e longos sons de prazer. Enquanto mordia os lábios, soltou um sorriso imenso de satisfação sem abrir os olhos, tinha acabado de ter um orgasmo. Estendeu o seu braço esquerdo na direcção onde Afonso tinha adormecido na noite anterior, imaginando-o ali...acabou também por adormecer.